Artigo: Prenúncio da catástrofe

Artigo do presidente do Conass, Carlos Lula, publicado no jornal Folha de São Paulo no dia 06 de fevereiro.

 

Na pandemia, estamos a olhar o precipício; ainda é possível não tombarmos

O avanço da Covid-19 no Brasil tem nos levado a enfrentar desafios inimagináveis. Em janeiro, mais de 1,46 milhão de pessoas foram diagnosticadas com a doença, bem mais do que o registrado no primeiro pico da epidemia, em julho de 2020.

Apesar da gravidade do momento, o reforço na rede de atendimento, em vez de crescer, diminui. Os leitos do SUS, financiados pelo Ministério da Saúde para a assistência aos pacientes com a doença, mínguam a cada dia.

Chegamos a ter, em dezembro de 2020, 12.003 leitos habilitados. Em fevereiro, no entanto, o quantitativo chegará a 3.187. Neste momento, estados e municípios respondem ao aumento das demandas com recursos próprios, mas chegamos a um limite perigoso.

A julgar pelo comportamento da epidemia em outros países e pela experiência recente da doença no Amazonas, o ano de 2021 será muito difícil. Felizmente, hoje dispomos de vacinas, mas, para que haja impacto na progressão de casos novos, é preciso que uma grande parcela da população esteja imunizada. São esforços simultâneos e complementares. No entanto, até que esse estágio ideal seja alcançado, não está descartado o risco de enfrentarmos um aumento ainda maior de infecções.

A inquietação se agrava sobretudo diante do surgimento de novas variantes do vírus, cujo comportamento, seja na transmissibilidade, seja na gravidade dos casos, ainda será preciso decifrar, demandando estudos adicionais. A situação epidemiológica atual indica um cenário mais sombrio. Além da necessidade de estar preparado para um aumento expressivo do número de casos, o SUS precisa estar apto para atender à legião de pessoas que, por receio de contágio ou por qualquer outro motivo, deixaram de procurar atendimento para suas patologias.

Cirurgias programadas foram suspensas; exames e consultas, adiados. Ao todo, 1,039 bilhão de atendimentos deixaram de ser realizados no SUS em 2020, de acordo com o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). Os reflexos já são sentidos nos serviços de saúde. As cirurgias, antes adiáveis, agora são urgentes. Casos simples se agravam em velocidade crescente.

Garantir atendimento para todos é um desafio incontestável, mas não o único. Para dar melhor resposta às demandas que se aproximam, antigas necessidades precisam ser satisfeitas. É imprescindível que melhoremos a capacidade de testagem no país e invistamos na rede de sequenciamento do vírus.

Somente com informação de qualidade e reunida de forma ágil é possível avaliar o comportamento das novas cepas no Brasil, o impacto delas para a saúde pública e, assim, desenhar medidas de resposta. Mais uma vez escrevo sobre esforços simultâneos que demandam dos gestores públicos uma atuação incomum. Quanto mais o tempo passa, mais urgentes são as providências e mais custosa a operação.

O financiamento é outro ponto sensível nesta equação. É preciso ter recursos financeiros. O incremento de 1,1% no Ploa (Projeto de Lei Orçamentária Anual) 2021, em relação ao Ploa 2020, aponta para seríssimos problemas neste ano no que tange à manutenção de alguns programas e, principalmente, na expansão de serviços. Afinal, a pandemia não terminou em 31 de dezembro de 2020. É desesperador o desenho do Orçamento de 2021 simplesmente desconsiderar que a pandemia não terminou.

Se existe um protagonista com destaque na pandemia do coronavírus até aqui, ele é o Sistema Único de Saúde. Se existe um legado a deixar quando a pandemia finalmente tiver sido vencida, este legado é o fortalecimento do SUS como marco civilizatório, como anteparo das profundas desigualdades que marcam o Brasil. Estamos, neste momento, a olhar o precipício. Ainda é possível não tombarmos.

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