Cem mil vidas perdidas

Apenas a Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, tem mais mortos por Covid-19 que Pequim, capital da China, que possui mais de 21 milhões de habitantes. Apenas a cidade de São Paulo, com mais de 10 mil mortes, supera o total de mortes pela doença de toda a Alemanha. Se excluirmos a Rússia, cujo território se estende por dois continentes, o Brasil, com aproximadamente 2,5% da população mundial, teve o total de óbitos da Ásia inteira, maior continente do planeta em relação à população, com aproximadamente 56% dos habitantes do mundo inteiro. Leio esses números da Revista Piauí e fico ainda mais impactado com o estrago que o novo coronavírus fez em nosso país.

Que outros momentos na história do Brasil vitimaram tantas outras pessoas? Faço a pergunta e vou em busca de tragédias e acontecimentos que marcaram o país. Rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, ocorrido em 2019: 250 mortos. Queda do voo do time Chapecoense, em 2016: 71 mortos. Incêndio na boate Kiss, em 2013: 242 mortos. Acidente aéreo no aeroporto Congonhas, São Paulo, em 2007: 199 mortos. Massacre do Carandiru, em 1992, 111 mortos. Pensei um pouco mais e fui atrás do número de óbitos ocorridos no incêndio do Edifício Joelma, em 1974: 187. Se somarmos todas essas tragédias, que estão em nossas memórias, temos um número um pouco maior que mil óbitos. Esse é o número de mortos diários por COVID-19 no Brasil há mais de dois meses. A soma de todas essas tragédias reunidas.

Se essas tragédias são insuficientes, fui buscar o número de mortos numa guerra. Pois bem, no decorrer da Guerra do Paraguai, entre 1864 e 1870, cerca de 50 mil brasileiros perderam a vida nos campos de batalha. Metade do número de vidas que já perdemos para a COVID-19. Qualquer comparação que se faça será insuficiente. Já estamos diante do maior massacre a vidas brasileiras num período tão curto da história. Um massacre pulverizado, cotidiano, que vai se infiltrando no nosso cotidiano. Uma tragédia invisível que toma de susto nossos familiares e amigos.

Basta lembrar que tudo iniciou em 26 de fevereiro de 2020. Quando o primeiro caso do novo coronavírus foi confirmado no Brasil, todos temeram por suas vidas. Qual seria a proporção de pessoas infectadas? Quantas vidas seriam perdidas? Por algum tempo, o país se uniu em temor a um futuro incerto e obscuro. No dia 11 de março, a Organização Mundial de Saúde declarou pandemia. Vinte e quatro horas mais tarde, o Brasil registraria o primeiro óbito por SARS-CoV-2. Com os primeiros casos notificados e concentrados em São Paulo, cidade de maior trânsito de pessoas pelo país, o vírus rapidamente se espalhou. Neste mesmo mês, as 27 Unidades Federativas confirmaram casos da doença.

No final de abril, mais de seis mil mortes por causa da COVID-19 já eram registradas no país. Estados iniciaram medidas mais rígidas, mas as regiões Norte, Nordeste, São Paulo e Rio de Janeiro foram as que mais sofreram com a primeira grande onda do vírus.

O número de doentes e óbitos cresceu assustadoramente. Os caixões enfileirados nos apresentaram as cenas reais de uma guerra. O Brasil assistia as despedidas em uma cerimônia fria, só por alguns instantes, em caixão lacrado. O novo coronavírus nos tirou até a chance de dizer adeus.

E não cessam as analogias com guerras, com trincheiras de batalha, com vidas perdidas em combate de um desafio gigantesco. Mas é preciso resistência, toda guerra tem um fim, embora estejamos longe de enxergar o fim desta que enfrentamos. Agora são mais de 100 mil vidas, mais de 100 mil amores. Na lista dos óbitos, há quem tenha ficado órfão, há quem nunca conseguiu nascer, há quem perdeu todos e questiona a si mesmo como prosseguir. Conseguimos a façanha de concentrarmos 1/7 das mortes do planeta Terra.

O vírus encontrou aqueles que estavam protegidos em casa, mas também tomou para si aqueles que lutavam para salvar vidas da COVID-19 em hospitais. Num dia, o vírus leva a mãe, no outro a filha. Uma médica se recuperava da infecção, enquanto a mãe dela era sepultada. O filho enterrava pais e avós, e tornava-se o remanescente da sua pequena família, o único a sobreviver da COVID-19.

Em 100 mil vidas cabem tantas histórias e a maior parte delas conta sobre como lutaram para continuar a viver, para vencer a COVID-19 e as agruras do desastre cotidiano. Não há como normalizar a morte de cem mil brasileiros em seis meses para uma única doença. Não há como normalizar termos mil vidas perdidas todos os dias. Não há como normalizar a completa indiferença daqueles que deveriam dar o exemplo de humildade e empatia. Simplesmente não dá. São cem mil vidas. E um número incontável de lágrimas daqueles que perderam os seus.

Carlos Lula
Presidente do Conass