Divergências e convergências marcam as discussões da Promoção da Saúde no Abrascão

Representantes da academia, do Ministério da Saúde e da entidade dos gestores pontuam diferentes aspectos da PNPS

A Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS) esteve no cerne das atividades propostas pelo Grupo Temático Promoção da Saúde e Desenvolvimento Sustentável no 11º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva – o Abrascão 2015. A mesa-redonda Como Tornar Viva uma Política? PNPS o Processo Continua! contou com a participação de Marco Akerman, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP); Marta Silva, da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (SVS/SAS/MS), e Fernando Cupertino de Barros, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e aconteceu em 30 de julho, no terceiro dia do Congresso.

Para Marco Akerman, os governos, na questões de saúde, são e sempre serão limitados. E isso não deve ser visto de maneira ruim. “Não quero um governo forte que ocupe todos os espaço e impeça a sociedade de atuar.  Quero um governo eficaz”, posicionou-se, criticando a tônica das campanhas de promoção e de prevenção. “A campanha do Ministério da Saúde não tem que mandar as pessoas pararem de fumar e comer menos, tem que disputar [junto à sociedade] o imaginário do que é saúde.” Os enfrentamentos no processo de construção de uma política de saúde estiveram em evidência com a fala de Akerman, que também focou na PNPS, escrita em 2006 e revisada em 2014. “Em sete anos aconteceram muitas outras coisas que justificaram sua revisão”. O professou finalizou sua intervenção com menção à 22.ª Conferência Mundial de Promoção da Saúde, que ocorrerá em Curitiba, em 2016.

Representante do Ministério da Saúde, Marta Silva afirmou que o desafio do órgão é tornar a política de promoção da saúde viva por meio de uma articulação cotidiana e contínua juntamente a vários ministérios federais e as entidades municipais e estaduais. O acordo feito entre o Ministério da Saúde com a Associação Brasileira da Indústria Alimentícia (ABIA)para a redução do sódio nos produtos alimentícios foi um dos exemplos citados por Marta Silva como ação bem engendrada. Ela mencionou ainda avanços em relação à luta contra o tabaco, mas destacou que o monitoramento de ações é fundamental para a garantia das políticas públicas. “Conseguimos regulamentar os ambientes livres de tabaco e o aumento nas taxações de impostos. É preciso, porém, estar vigilante o tempo inteiro, porque sempre pode ser feita uma ou outra ação junto à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal para derrubar essas conquistas”, ponderou.

A PNPS está centrada no objetivo de interromper o desenvolvimento das doenças crônicas e, para tanto, propõe ações e estratégias ligadas diretamente aos fatores de risco, como o sedentarismo, o tabagismo e a má alimentação. A Política abrange também investimentos na qualificação da atenção e da assistência aos pacientes. Por um lado, Marta alertou que o jogo de disputas e tensões continua grande, com a não regulamentação da propaganda de produtos voltados às crianças e de bebidas alcoólicas. Por outro lado, enfatizou a vitória do Ministério da Saúde em questões como a lei do desarmamento, valorizando e fazendo valer na prática a cultura da paz e dos Direitos Humanos, um dos nove pontos do documento. Ela ainda declarou que o Ministério continua aberto ao diálogo na afirmação da PNPS: “A construção é coletiva e está em processo”.

Fernando Cupertino de Barros questionou o fato do país querer construir uma política pública de promoção da saúde quando sequer a população brasileira se apropriou do Sistema Único de Saúde (SUS). “Uma política de promoção tem que se configurar como um grande pacto, que só é feito quando todos estão de acordo. E, para estarmos de acordo, precisamos conhecer o assunto. Será que temos tido o cuidado de ouvir as pessoas e todos os interessados?”, indagou.

“Temos a ideia socialista de um sistema universal de saúde, mas vivemos em um ambiente capitalista cada vez mais duro. O nosso pensamento de saúde já chega a ser tão abrangente que inclui a felicidade das pessoas, mas realizar isso não é nada fácil”, alertou Cupertino.

Após o fim das apresentações, a coordenadora da mesa-redonda, Carmen Fontes de Souza Teixeira, docente da Universidade Federal da Bahia (UFBA), atentou-se para o fato de que as falas dos expositores não foram convergentes e também expôs suas perspectivas. “A ação do Ministério ainda é muito tímida no que se refere à promoção da saúde, porque se esperaria muito mais do ponto de vista da incorporação das diretrizes das conferências internacionais em termos de políticas de saúde”, argumentou. “Apesar dos pesares, também temos avanços e não podemos negar isso. Sabemos que o programa de controle de tabagismo é um dos grandes avanços que nós temos e as secretarias estaduais de saúde o incorporaram”, refletiu.

Confira abaixo a íntegra da participação do assessor técnico do CONASS, Fernando Cupertino Barros

Como Tornar Viva uma Política? PNPS o Processo Continua!
Proponente: GT Promoção da Saúde e Desenvolvimento Sustentável
Coordenador: Carmen Fontes de Souza Teixeira – UFBA (BA)
Expositor: Marco Akerman – FSP/USP (SP)
Expositora: Marta Silva – Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (SVS/MS) (DF)
Expositor: Fernando Passos Cupertino de Barros – CONASS (GO)

“Quero, inicialmente, agradecer o honroso convite da Comissão Organizadora deste evento para participar da discussão que aqui se processa sobre um tema que assume uma importância cada vez maior no âmbito não apenas da Saúde Coletiva, mas dos sistemas de saúde como um todo e, em especial, da vida dos cidadãos.

Não vou projetar diapositivos para descrever aspectos históricos, marcos normativos da Política Nacional de Promoção da Saúde, nem para cansá-los em ouvir coisas que muitos aqui conhecem até em maior profundidade do que eu. Pretendo, sim, trazer alguns elementos para nossa reflexão, de modo a ajudar-nos a saber onde estamos no que respeita ao processo de implementação da política; naquilo em que já logramos sucesso e quais desafios continuam a nos interpelar. Tentarei – não sei se com sucesso, equilibrar a visão acadêmica com a visão de simples cidadão. Um cidadão interessado “em viver mais e melhor”, conforme diria nosso saudoso Gilson Carvalho.

Dou muito valor à força intrínseca que possuem as palavras. Assim, é preciso levar em consideração o texto da Portaria 687, de 30 de março de 2006, que instituiu a Política Nacional de Promoção da Saúde. Nele são estabelecidas relações muito fortes com a expressão “Pacto pela Saúde”, desdobrado em seus componentes de defesa do SUS, de defesa da vida e no pacto de gestão. Ora, uma política nacional de promoção da saúde é, de fato, um autêntico pacto pela saúde, a partir do entendimento de que as intervenções curativas e orientadas para o risco de adoecer são insuficientes para a produção da saúde e de boa qualidade de vida de uma sociedade, tendo-se em vista que muitos fatores sociais também influenciam na saúde dos indivíduos e das populações, tais como as condições em que as pessoas nascem, vivem, trabalham e envelhecem.

Tais condições sofreram uma deterioração importante com o processo de urbanização e de progresso material e tecnológico das sociedades. Conosco, não foi diferente. A qualidade do ar e da água, a partir das diferentes formas de degradação ambiental, somada a outros problemas da urbanização, sobretudo a diminuição dos espaços de mobilidade urbana e acessibilidade, bem como a problemas de habitação, saneamento, educação e trabalho compõem um complexo de situações, cujo enfrentamento exige tanto compromisso público verdadeiro, quanto engajamento da sociedade.

Parece-me que nós, latinos, temos uma vocação natural para o prolixo, de modo que se ganhamos em extensão, muitas vezes perdemos em compreensão. Ora, se nos debruçarmos sobre as preocupações enunciadas pela Carta de Ottawa, em 1986, veremos que as ambições eram relativamente modestas, ao delimitar a Promoção da Saúde a cinco pontos fundamentais: a elaboração e implementação de políticas públicas saudáveis; a criação de ambientes favoráveis à saúde; o reforço à ação comunitária; o desenvolvimento de habilidades pessoais e, ainda, a reorientação dos sistemas de saúde para o enfrentamento dos novos desafios decorrentes de mudanças dos perfis demográfico e epidemiológico.

A Portaria 2446, de 11 de novembro de 2014, que redefine a Política Nacional de Promoção da Saúde, nos seus “considerandos” sequer faz alusão àquela de 2006, mas expressa de modo extremamente abrangente valores, princípios, diretrizes, objetivos, eixos operacionais, temas prioritários, competências das diferentes esferas de governo. Pecou-se, talvez, pela largueza da intenção, em detrimento da objetividade prática capaz de redundar em ações efetivas e de amplo alcance.

Fiando-me, uma vez mais, na força intrínseca dos vocábulos, reporto-me ao objetivo geral enunciado na portaria em questão, em seu artigo 6º:

“A PNPS tem por objetivo geral promover a equidade e a melhoria das condições e modos de viver, ampliando a potencialidade da saúde individual e da saúde coletiva, reduzindo vulnerabilidades e riscos à saúde decorrentes dos determinantes sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais. ”

Ora, pelo que percebe, a proposta é ambiciosa e a tarefa é hercúlea, pois extrapola amplamente os limites da área da saúde, como comumente se diz. Exige a conjugação de esforços de praticamente todos os fatores que, direta ou indiretamente, afetam a vida das pessoas e, consequentemente, seu estado de saúde e de bem-estar.

Temos logrado algum êxito no que se refere, por exemplo, ao tabagismo, com redução importante de mais de 30% do número de fumantes nos últimos nove anos. Muitas ações são responsáveis por tais resultados, desde a proibição das propagandas de cigarro, à atuação diuturna das equipes de saúde da família. Entretanto, com o consumo do álcool, ainda não tivemos o sucesso de que necessitamos. Há uma glamourização da bebida, favorecida por questões culturais, sobretudo dentre os jovens; propagandas sedutoras; preços acessíveis… Mais da metade dos adolescentes experimenta bebida alcoólica antes dos 16 anos. Os dados são da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar, do Ministério da Saúde, que, em 2012, constatou que 66,6% dos adolescentes – entre 13 e 15 anos – experimentaram bebida alcoólica alguma vez na vida. E mais: o Centro de Referência Estadual em Álcool e Drogas (Cread) de Minas Gerais, em pesquisa recente, mostrou que mais de dois terços dos 1.976 dependentes químicos, que buscaram ajuda, experimentaram drogas entre 12 e 17 anos. O álcool foi a porta de entrada para 37%.

Nesta semana, o jornal Folha de São Paulo publicou que “os adultos brasileiros bebem em média cerca de 8,7 litros de álcool puro por ano – quantidade que já foi maior, mas que continua sendo uma das mais altas das Américas e supera a média mundial, segundo fontes da OMS”, afirma o artigo. Nos três anos anteriores, o consumo era de 9,8 litros por ano. Um outro estudo citado pela OMS e mencionado na reportagem, indica o álcool como a maior causa de morte entre jovens brasileiros de 15 a 19 anos. Como percebem, há avanços, mas ainda muito aquém do necessário.

Sobre o uso de drogas ilícitas, citarei apenas um dado: no mês passado, os jornais noticiaram que o Brasil se transforma num dos maiores mercados para a cocaína com uma prevalência que supera a dos Estados Unidos e atinge mais de quatro vezes a média mundial. Os dados são do Escritório de Drogas e Crimes da Organização das Nações Unidas (UNODC, na sigla em inglês), que também revela que o Brasil passou a ser o maior centro de distribuição de cocaína no mundo da última década, citado em 56 países como o local de trânsito da droga. Mercado pressupõe oferta e consumo, logo, o fato causa preocupações profundas não só com a cocaína, mas com o crack e outras substâncias.

Outro ponto que gostaria de destacar, dentre os sucessos que nos animam, diz respeito ao aumento da prática de exercícios físicos.  Nos últimos cinco anos, a quantidade de brasileiros que pratica algum tipo de atividade física regularmente subiu 12,6%. O estudo de Vigilância de Riscos e Proteção para Doenças Crônicas aponta que a procura pela prática de exercícios em academias foi a que mais cresceu, superando até mesmo esportes como o futebol. Evidentemente, que apenas uma pequena parcela da população tem acesso a esse tipo de atividade física em academias, mas não podemos nos esquecer da louvável iniciativa adotada pelo SUS, desde 2011, ao implantar as “academias da saúde” em diversos municípios brasileiros. Entretanto, o que se percebe, lamentavelmente, é que nossas cidades não favorecem o caminhar seguro, que seria uma forma de exercício físico ao alcance de todos. Nem sempre há calçadas e estas, quando existem, muitas vezes são mal conservadas, constituindo-se em fonte adicional de risco de quedas e suas temíveis consequências, sobretudo para pessoas idosas. Parece não haver, decididamente, a correta compreensão de que a construção de um ambiente saudável depende da conjugação de esforços multisetoriais, que envolvem o Poder Público e também a sociedade.

Quero ainda falar-lhes sobre algo que me intriga, entristece e preocupa: o acesso à alimentação saudável. Ora, as evidências são por demais eloquentes em apontar os malefícios do excesso do consumo de sal, açúcar e gorduras. Alguém discorda? Pois bem, já perceberam o teor dessas substâncias nos rótulos dos alimentos industrializados que estão nas prateleiras dos supermercados a preços muito mais atrativos que o de alimentos saudáveis? Já viram quanto de sal tem um pacote individual de macarrão instantâneo, que em famílias de pouca renda muitas vezes tem sido utilizado até com alimento infantil? Alguns chegam a conter o equivalente a quase 70 % do consumo máximo diário de sódio!!! O mesmo acontece com os embutidos, os congelados, os enlatados, sem levarmos em conta a presença de conservantes, os nitritos, os espessantes, os acidulantes, etc. Quanto ao açúcar, criou-se o mau hábito de se beber refrigerantes em todas as refeições, independentemente de classe social. Os sucos de fruta industrializados, por sua vez, têm muitas vezes apenas 10% de suco da fruta natural, acrescidos de água e de uma enormidade de açúcar que muitas vezes equivale à dos refrigerantes e, portanto, são tão nocivos quanto aqueles. Ah, mas eu só tomo refrigerante zero! Sim, deixo de consumir o excesso de açúcar, mas caio no sal, pois eles têm mais sódio…

Ora, se as taxas de sobrepeso e obesidade são preocupantes no mundo todo, e também no Brasil, onde o excesso de peso já atinge 52,5% da população, segundo o Vigitel, por que se permitir tal incoerência? Se temos uma alta prevalência de hipertensão arterial, por que se admitir a presença de excesso de sal nos alimentos industrializados que, fatalmente agrava a situação dos que já são hipertensos e contribui para que outras pessoas se tornem hipertensas?

O Ministério da Saúde, é bem verdade, em 2011, assinou um termo de compromisso com entidades representativas da indústria de alimentos, para uma redução gradativa do sal em alguns produtos, num período de vários anos. Será preciso ir além e assegurar que o pacto seja efetivamente cumprido e ampliado.

Um último elemento que desejo mencionar é o da “epidemia de violência” que enfrentamos no Brasil já há vários anos e que tem sido objeto da preocupação do Conselho Nacional de Secretários de Saúde de uma maneira obstinada. Talvez estranhem o termo “epidemia”, mas se diariamente os jornais nos informassem que cerca de 250 pessoas por dia morrem de causa semelhante, isso não teria feições de uma epidemia? Pois tais números refletem as mortes diárias por algum tipo de manifestação de violência, incluindo-se os acidentes de trânsito. Seria algo como a queda de um Airbus por dia! Não é uma situação simples de se combater, pois há equívocos que se acumulam há muitos anos, seja na política econômica, seja na efetividade da aplicação das leis, seja na atuação isolada de setores públicos que, em lugar de agir de maneira intra e intersetorial, permanecem com suas práticas arcaicas e isoladas. No aspecto de prevenção da violência e de promoção de uma cultura de paz, penso que é o caminho mais longo e penoso que temos a percorrer.

Para finalizar, reporto-me à Carta de Ottawa, em que as dimensões do reforço à ação comunitária e o desenvolvimento de habilidades pessoais parecem-me ser um pilar da maior importância para se avançar na promoção da saúde. Os cidadãos precisam ser informados sobre essas questões que dizem respeito à manutenção de seu bem-estar e de sua saúde. Não bastam campanhas publicitárias, a meu ver. É preciso uma atuação forte, em concerto, e para tanto não nos esqueçamos do enorme potencial que nos oferece a Saúde da Família quando bem estruturada. É possível ir mais longe, dar maior capacidade às pessoas para se manterem em boa saúde, com autonomia e apoio das estruturas e estratégias do nosso sistema de saúde.

Nos países onde se percebem os maiores avanços nas ações de promoção da saúde, o papel da sociedade é fundamental, pois os governos, independentemente de ideologias, preocupam-se geralmente muito mais com indicadores econômicos do que com os indicadores de saúde. Assim, ao tentar impor normas e sanções à indústria de alimentos, por exemplo, são chantageados com a ameaça do desencadeamento do desemprego em massa, decorrente da diminuição dos lucros das empresas. Se não for o firme protagonismo da sociedade civil, da manifestação independente do setor acadêmico, seremos sempre presa fácil de políticas que nada têm de saudáveis. É preciso lutar para que os outros pressupostos originais da promoção da saúde sejam efetivamente implementados pelos governos: a elaboração e implementação de políticas públicas saudáveis; a criação de ambientes favoráveis à saúde; e, ainda, a reorientação dos sistemas de saúde para o enfrentamento dos novos desafios decorrentes de mudanças dos perfis demográfico e epidemiológico.

No caso do Brasil, penso que não há sentido em nos deixar levar por um certo sentimento de ufanismo pelo pouco que já se conseguiu fazer face aos imensos desafios que nos espreitam. Urge chamar a sociedade para encará-los e, assim, obtermos nosso passaporte para uma vida melhor, com mais saúde, bem-estar e felicidade, metas maiores da promoção da saúde. Em tempos de conferência nacional de saúde, tais coisas precisam estar muito presentes em nossas cabeças”.

 

Fonte: www.abrasco.org.br

Foto: Agência Kah