Revista Consensus apresenta entrevista inédita com o sociólogo Bolívar Lamounier. Confira!

A entrevista integra a revista Consensus n. 7 que traz como tema principal o movimento da nova classe brasileira e seus impactos na saúde. A publicação foi distribuída ontem (24), no seminário Saúde: para onde vai a nova classe média, como complemento do material desenvolvido para o debate.

 

As transformações econômicas ocorridas no Brasil nos últimos anos têm chamado a atenção para um novo estrato social, que cada vez mais ocupa um espaço importante na sociedade, com impactos diretos tanto na economia como na estrutura governamental do país. Trata-se do surgimento da nova classe média brasileira – um fenômeno com grande significado social e político. Para falar sobre este assunto, a Revista Consensus, ouviu Bolívar Lamounier.

Sociólogo e Ph.D. em Ciência Política pela Universidade da Califórnia, em Los Angeles, Lamounier é também membro do Comitê Assessor Acadêmico do Clube de Madri, entidade integrada por ex-chefes de Estado e criada em outubro de 2002 com o objetivo de promover internacionalmente a democracia.

Com a propriedade de quem já escreveu numerosos estudos sobre Ciência Política, publicados no Brasil e no exterior, o sociólogo falou sobre essa nova classe social em ascensão no país, especialmente no que diz respeito às expectativas dessa parcela da população em relação às políticas públicas brasileiras, mais precisamente quanto ao Sistema Único de Saúde.

ConsensusA nova classe média brasileira vem desenhando um país com novos interesses, comportamentos e principalmente novas aspirações, que interferem no processo de desenvolvimento do Brasil. Como o senhor analisa esse movimento e descreve essa crescente parcela da população?

Lamounier – No último quarto de século, praticamente todos os países emergentes passaram por um intenso processo de mobilidade social vertical. Refiro-me a uma mobilidade estrutural de toda uma camada em decorrência de processos econômicos poderosos, como a abertura das economias, uma fase de vigoroso crescimento da economia mundial no fim do século; e, no caso brasileiro, o controle da inflação e a consequente expansão do crédito.

Ao mesmo tempo, um amplo leque de novos bens de consumo e novos serviços chegou aos mercados do mundo inteiro, propiciando uma marcante mudança em gostos e estilos de vida. Ao contrário dos integrantes da classe média tradicional, que apenas almejavam reproduzir o status dos pais, em um universo mais ou menos estático, os filhos dessa “nova” classe média querem “subir na vida”, viver melhor, consumir mais. Mas, para isso, precisam de mais e melhores empregos ou melhores chances de trabalhar por conta própria, a fim de gerar uma renda consentânea com essa nova forma de viver.

Consensus – Quais são as expectativas da nova classe média e como elas podem influenciar os fenômenos sociais, políticos e econômicos no Brasil?

Lamounier – A classe média antiga tinha no serviço público – civil e militar – uma base econômica razoável e relativamente segura. A “nova classe média” de que estamos falando precisará de um esquema de vida diferente. De uma solução múltipla, eu diria, com uma participação relativa muito maior do setor privado. É no mercado que ela vai se sustentar, batalhando por empregos ou estabelecendo-se por conta própria.

Quanto à influência política, descartemos, desde logo, a ideia de um comportamento homogêneo. O conjunto de que estamos falando representa cerca de 50% da população, quase 100 milhões de pessoas, algo entre 60 e 70 milhões de eleitores. Não é concebível que um agregado desse tamanho vá votar do mesmo jeito ou agir da mesma forma, seguindo os mesmos valores e objetivos de antes.

Como qualquer grupo social, essa nova “classe C” penderá para um lado em uma eleição e para outro na eleição seguinte, dependendo das questões que estejam chamando a atenção do país no momento, da credibilidade com que os candidatos e partidos encarnem as alternativas etc. Basta lembrar que a maioria dessa classe ajudou a eleger Fernando Henrique Cardoso duas vezes no primeiro turno, e depois apoiou Lula em outras duas eleições.

Especulando, creio que uma distinção importante aparecerá ao longo do tempo: uma bifurcação mais nítida, com uma parte dessa classe apoiando ainda um intervencionismo do Estado na economia e na vida do país e outra parte vendo a nossa cultura intervencionista como um conjunto quase insuperável de impedimentos às suas aspirações.

Consensus Como dar sustentabilidade às políticas públicas, considerando as mudanças decorrentes do advento da nova classe média?

Lamounier – De fato, estamos falando de um megaprocesso de mobilidade social ascendente, uma mudança portentosa, com mudança de hábitos e comportamentos, novos objetivos de vida e – sublinhemos este ponto – uma pressão crescente por melhores serviços públicos, melhor atendimento, redução das desigualdades sociais e regionais, e por aí afora.

Dentro desse quadro, a ideia de sustentabilidade envolve três aspectos. O primeiro é o crescimento da economia e a manutenção de um viés distributivo – como a correção do mínimo acima da inflação e políticas sociais de amplo espectro – iniciado no governo Fernando Henrique e mantido por Lula e Dilma. O segundo é o aprimoramento da administração pública. Este ponto inclui as parcerias com organizações privadas por meio de convênios e diversas outras formas, mas é preciso lembrar que há muita corrupção e tráfico de influência nessa área, isso terá que ser resolvido. O combate ao corporativismo também é essencial, a administração pública tem que ser de fato pública, e não um conjunto de nichos de grupos em busca de privilégios.

O terceiro e último aspecto, como já assinalei, é que as famílias de classe média terão que gerar uma renda regular e cada vez mais alta; para isso terão que proporcionar um nível educacional e de qualificação profissional adequado a seus filhos.

Não menos importante, os jovens da nova classe média sabem ou vão rapidamente descobrir que o emprego público por si só não será suficiente. Não poderá oferecer vagas no volume necessário, e muito menos de boa qualidade, com reais perspectivas de carreira etc. Ou seja, eles vão depender muito mais do setor privado. É no mercado que eles vão precisar procurar sustentação: batalhando por bons empregos ou estabelecendo-se por conta própria. E a competição será dura. Eles rapidamente entenderão que o diploma tem valor decrescente. Se optarem por se estabelecer como pequenos empresários, logo perceberão que o Estado brasileiro tem uma voracidade tributária insaciável e um gosto também insaciável por papelório inútil, conforme as tradições que herdamos da Península Ibérica de 500 anos atrás.

Consensus – Considerando os princípios constitucionais do SUS – como a universalidade, a gratuidade e a equidade – e as aspirações da nova classe média em relação à saúde, em sua opinião, o sistema público de saúde brasileiro é capaz de atender a esses anseios?

Lamounier – A curto prazo, certamente não, e duvido que ele venha a ter tal capacidade mesmo em um horizonte mais dilatado, digamos de uma ou duas décadas. Meu relativo pessimismo a respeito do SUS tem a ver, por um lado, com a imagem negativa do sistema e, por outro, com o fato de a classe média provavelmente vir a ter anseios ainda mais altos no horizonte de tempo a que me referi.

Consensus – Até que ponto a percepção da população a respeito do SUS influencia na procura cada vez maior pelos planos privados de saúde?

Lamounier – Não conheço pesquisas específicas sobre o tema, mas me parece muito provável que esse seja um fator influente. No processo de mobilidade, as pessoas que ascendem na escala social tendem a tomar como referência os valores e padrões dos que estão acima. Acrescentemos que, no Brasil, a maioria das pessoas crê que a medicina privada é melhor.

ConsensusRecentemente, a imprensa divulgou informações de que o governo estaria negociando, com as empresas responsáveis pelos planos privados de saúde, um pacote de medidas de estímulo a esse mercado a fim de garantir melhorias no atendimento. Tendo em vista a característica de consumo de bens e de serviços dessa nova classe média, este movimento pode se concretizar ou evoluir futuramente?

Lamounier – Cobrar a melhoria dos serviços será uma tendência forte e generalizada, com ou sem uma intervenção adequada por parte dos governos. Este é o principal efeito do que costumamos chamar de “politização”. O termo é, muitas vezes, entendido como referência a coisas muito sofisticadas, como se milhões de pessoas fossem, de repente, se comportar conforme os ditames do último filósofo da moda. Deixemos essa bobagem de lado. O significado primeiro e básico de politização é a pessoa investir mais tempo e energia na defesa de seus interesses, em vez de ficar esperando milagres. Ser mal atendido quando se precisa de um serviço é um cutucão politizador, se posso dizê-lo dessa forma.

O que eu imagino como politização é, portanto, um processo complicado, talvez não muito perceptível: uma pressão crescente sobre o governo, nos três níveis – municipal, estadual e federal. As pessoas vão reclamar cada vez mais da tributação e dos serviços públicos de modo geral: da insegurança, da má qualidade da educação. E não nos esqueçamos de que a educação é chave para a sustentação da mobilidade; muitas famílias de classe média estão fazendo um enorme esforço para que seus filhos possam frequentar escolas privadas. Desse modo, vão gritar contra a corrupção, evidentemente, pois quanto mais conscientes da quantidade de impostos que pagam, mais vão esbravejar. É normal e salutar que isso aconteça.

Consensus – Como o senhor responderia a questão central do seminário – Saúde: para onde vai a nova classe média?

Lamounier – Essa é uma pergunta muito relevante, pois há muita gente batendo o bumbo do “grande avanço social” e quase ninguém discutindo a sustentabilidade de tal processo. Amaury de Souza e eu suscitamos essa questão em nosso livro A classe média brasileira – Editora Elsevier, 2009. Consumir é ótimo, mas cada família tem de gerar renda para financiar seu consumo. No mundo atual, a educação é um ponto crítico, e sabemos todos que a situação educacional brasileira é catastrófica. Se fosse uma questão só de gogó, já estaríamos no Primeiro Mundo, mas a realidade é bem outra.

O que vale para a educação vale evidentemente para a saúde. Esse conjunto de 100 milhões de pessoas que agora estamos chamando de nova classe média tem carências enormes na área da saúde, tanto de educação e prevenção quanto de atendimento médico-hospitalar, custo dos medicamentos etc. Para onde, então, vai a classe média? Eu penso que a situação dela vai melhorar, até porque ela está aprendendo a exigir o que lhe é devido, mas conviria pararmos de contar mentiras para todo mundo e para nós mesmos. A realidade do país é muito dura e não vai mudar da noite para o dia.

 

Confira abaixo a edição completa da Revista Consensus n. 7