Com a saúde como mercadoria, só rico é bem atendido

Texto da jornalista Cláudia Collucci, publicado hoje (27/01), no Jornal Folha de S. Paulo

Por que o tema saúde pública não consegue fazer o mesmo barulho que o transporte público tem conseguido? Ainda que o assunto tenha aparecido nas manifestações de junho de 2013, ele logo se esvaziou. Perdemos uma oportunidade única de iniciar um movimento social em torno de uma questão que devemos enfrentar: afinal, que sistema de saúde nós queremos ter?

A menos que você seja um iniciado em políticas de saúde, dificilmente já se fez essa pergunta. Mas é melhor fazer um esforço e começar a entender o momento crucial que vivemos hoje. A proposta de uma cobertura universal de saúde vem tomando o centro da agenda internacional e sendo defendida por organismos como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).

É preciso entender, porém, que cobertura universal de saúde não é a mesma coisa que um sistema universal de saúde (o nosso SUS, por exemplo). O primeiro se refere a um conjunto de garantias que podem estar cobertas ou não.

Por exemplo, no México, a população com carteira assinada é atendida pelo Instituto Mexicano de Seguro Social e os ricos contratam o mercado privado. Para as cerca de 50 milhões de pessoas que não estão incluídas no mercado formal de trabalho existe o “Seguro Popular”, que oferece pacotes básicos de serviços. Cobrem, por exemplo, sete tipos de câncer. O câncer de pulmão é um deles. Mas se a doença acometer a boca ou a laringe, já está fora da alçada do seguro.

A proposta da “cobertura universal de saúde” caminha por aí. Ela promete dar acesso a todos os serviços de saúde, mas fazendo uma separação de acordo com a capacidade de pagamento. Quem pode pagar mais, tem acesso a um maior número de serviço. Quem não pode, fica com a cesta básica, alijado de tratamentos caros, como os de câncer. Se quiser saber mais sobre isso, leia a cartilha editada pelo Cebes (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde).

No Brasil, incluímos na Constituição de 1988 que a saúde é um direito universal e dever do Estado e que seria financiada por fontes fiscais. Mas, na verdade, muito do que se pregou na Constituição e em outras normas que vieram depois ficou no papel. O que gente viu desde então foi o crônico subfinanciamento do sistema e, na última década, o crescimento dos seguros privados, impulsionado por recursos públicos em forma de incentivos fiscais. Em São Paulo, por exemplo, 50% da população têm plano de saúde.

Vale lembrar, no entanto, que a maioria das pessoas tem acesso a planos e seguros privados de saúde enquanto estão no mercado de trabalho. Ao se aposentar, muitos perdem seus planos porque não têm mais como pagar. Justamente na velhice, quando mais precisam. Volto à pergunta: É esse o sistema que queremos?

Não existe um sistema ideal de saúde, mas existem modelos que estão muito mais avançados do que o nosso, como os de Portugal e Espanha. São sistemas também financiados por impostos e organizados a partir de uma atenção básica bem estruturada, interagindo com os demais níveis de especialização. Conseguem ter melhores indicadores de saúde e menores gastos do que sistemas baseado em seguros privados, como o americano. E com grande aprovação social.

Mas, para avançarmos rumo a um sistema de saúde semelhante, precisamos parar de enxergar a saúde como um bem de consumo e lutar pelo sistema assegurado pela Constituição. Saúde não é mercadoria. A doença, sim, tem sido um grande negócio para a indústria da saúde. Não é a toa que as farmacêuticas e a indústria de produtos e equipamentos médicos sempre ocupam boas colocações no ranking das mais lucrativas.

Parece óbvio que, para esse mercado, não interessa que a população tenha menos doenças. Menos doença significa menos consumo, menos lucro.

Temos iniciativas ótimas no nosso SUS, como o Programa de Saúde da Família, que vem sendo copiado, inclusive, por alguns planos de saúde. Sim, ainda temos muitos problemas, mas sem mobilização popular não só não vamos superá-los como corremos o risco de perder o que já conseguimos.

Como já disse Gilson Carvalho, um dos idealizadores do SUS que morreu ano passado, “o SUS nasceu uma Mercedes que esqueceram de botar gasolina”. Sim, o nosso SUS anda empurrado. E, agora, com o capital estrangeiro chegando na área da saúde, corre o risco de ser seriamente atropelado. De novo, é isso que queremos?

Cláudia Collucci é repórter especial da Folha, especializada na área da saúde. Mestre em história da ciência pela PUC-SP e pós graduanda em gestão de saúde pela FGV-SP, foi bolsista da University of Michigan (2010) e da Georgetown University (2011), onde pesquisou sobre conflitos de interesse e o impacto das novas tecnologias em saúde. É autora dos livros ‘Quero ser mãe’ e ‘Por que a gravidez não vem?” e coautora de ‘Experimentos e Experimentações’. Escreve às terças.