Entrevista com dr. Win Van Ledirghe, professor de saúde internacional do Instituto de Medicina Tropical de Lisboa

Entrevista com dr. Win Van Ledirghe, professor de saúde internacional do Instituto de Medicina Tropical de Lisboa e debatedor do seminário CONASS Debate – Caminhos da Saúde no Brasil.

 

– Como os diferentes países que possuem sistemas públicos de acesso universal à saúde convivem com a questão da privatização dos serviços de saúde?

Eu estou muito otimista, mas é uma luta constante, não é? Muitas vezes as pessoas falam de acesso universal ou cobertura universal, como se fosse uma coisa, uma coisa que você tem ou não tem. Mas é realmente um movimento: ampliação progressiva do acesso equitativo a mais pessoas para uma gama mais relevante de serviços. No final do século 20, a maioria dos países do mundo, pelo menos, falou sobre o acesso universal – na prática, alguns eram mais comprometidos do que os outros e, em muitos o acesso universal era apenas uma retórica vazia. Mas apenas dois grandes países se destacaram por uma posição de princípio contra a solidariedade, que é essencial para o acesso universal: os EUA e a China. Mas lá também o vento mudou e eles estão no caminho para o acesso universal. Isso significa que temos um raro consenso político sobre o princípio. O que precisamos encarar agora é a longa discussão sobre os aspectos práticos da implementação: como superar interesses especiais, como proteger o público, incluindo os não-alcançados. Isto não é apenas sobre mecanismos de financiamento, mas, em primeiro lugar sobre o modelo de cuidados, de cuidados primários de saúde, e sobre o lugar da saúde na sociedade. Não é uma luta fácil, e não vai acabar de um momento para outro em vitória, mas em sociedades que se modernizam, e onde os cidadãos estão cada vez mais bem informados, é difícil voltar o relógio para trás. As pessoas querem acesso, elas querem manter o acesso, e isso é uma força formidável.

 

– Como os diferentes países que possuem sistemas públicos de acesso universal à saúde convivem com a questão da privatização dos serviços de saúde?

Acho que o termo privatização é perigoso porque pode ser usado para coisas muito diferentes, como por exemplo o estabelecimento de relações contratuais rigorosas com ONGs e a ausência reguladora ou a retirada do Estado. Estas são realidades muito diferentes. A dicotomia público-privada tem sido a forma mais inútil de discutir os sistemas de saúde, desviando a atenção do que realmente importa para as pessoas: não é se o seu prestador de serviços de saúde é um funcionário público ou um empresário privado, nem se os serviços de saúde são públicos ou privados. Para elas importa se os serviços de saúde foram reduzidos a uma mercadoria que é comprada e vendida mediante o pagamento por serviços de saúde, sem regulamentação ou sem defesa do consumidor.

 

Em outras palavras, o que importa é saber se os serviços são prestados numa base comercial, no interesse do prestador, ou, pelo contrário, se são regulados no interesse do paciente. A comercialização tem consequências desastrosas para a qualidade, bem como para o acesso aos serviços. É muito simples: o fornecedor tem o conhecimento, o paciente tem pouco ou nenhum; se não há regulação, e se o provedor pode lucrar com a venda do que é mais rentável, ele ou ela, muitas vezes – não sempre, mas muitas vezes – fazem assim, mesmo se não for o melhor para o paciente. Se não existem sistemas eficazes de freios e contrapesos, aqueles que não podem pagar pelos serviços são excluídos, aqueles que recebem os serviços podem não receber os cuidados de que necessitam e, muitas vezes, recebem cuidados de que não precisam, e invariavelmente pagam muito. Isso quebra o contrato de confiança implícito entre o profissional de saúde e o usuário. Sistemas de saúde comercializados e não regulamentados são altamente ineficientes, caros, desiguais e iatrogênicos; mas assim são também alguns sistemas públicos com problemas de gestão, e também existem sistemas bem regulados, onde os médicos e enfermeiros são empresários privados, mas trabalham em uma estrutura que se organiza no interesse do paciente.

 

A verdadeira questão a respeito da “privatização” é saber se, num determinado país, existem a capacidade e a força política para regular. Se a “eficiência da privatização” vem como um pacote que inclui a ausência reguladora e a retirada do Estado, então os resultados são previsivelmente desastrosos em termos de resultados, de ineficiência, de custo e de insatisfação pública. A mão invisível do mercado simplesmente não vai funcionar – basta olhar para o desengajamento do Estado na China na década de 1990: estagnação dos indicadores de saúde, aumento nas desigualdades e descontentamento da população.

 

O realmente importante é saber se as autoridades públicas assumirão a responsabilidade de governar e regular os prestadores no interesse público, e se há uma sociedade civil vigilante – organizações de consumidores, eleitorado político, imprensa – fazendo que tanto o Estado quanto os prestadores de serviços de saúde prestem contas.

 

– A falta de recursos é, em sua opinião, a maior ameaça dos sistemas universais de saúde? – De que forma países com sistemas universais de saúde poderão continuar a oferecer assistência à saúde de qualidade sem comprometer o orçamento público em outras áreas como Educação e Segurança?

Nós estávamos falando sobre a comercialização dos serviços um pouco antes. Para mim isso é mais problemático do que as restrições orçamentárias. Despesas de saúde sobem mais rápido do que o crescimento econômico. Isso significa mais dinheiro para a saúde. Pode haver retrações temporárias, mas a tendência básica é a de mais dinheiro para a saúde. Infelizmente, isso não significa, necessariamente, mais orçamento para a saúde, nem mais saúde para o dinheiro.

 

Se as despesas de saúde (crescentes) forem desviadas do bolso para pagamento dos serviços, se não forem combinadas e geridas no interesse público, então vamos perder o benefício potencial do crescimento e estaremos em apuros. Porque, então, o espaço para a ampliação do acesso e da cobertura é desviado para transações comerciais, com todos os inconvenientes de que falamos anteriormente. E deixamos de expandir o espaço orçamentário para o que é importante: responder às necessidades e expectativas das pessoas.

 

Quando a economia limita o crescimento das despesas de saúde, o maior risco é cortar o orçamento e optar por uma retirada do Estado de suas responsabilidades. Isso amplia os efeitos negativos da desaceleração do crescimento das despesas de saúde no sistema de saúde, porque se ampliam a comercialização, a ineficiência e a injustiça. Em tempos de recursos limitados, um papel de regulação ativa, na verdade, torna-se ainda mais importante do que em períodos de crescimento sólido.

 

A pressão social protegerá contra tais tendências e assegurará que os mecanismos de solidariedade sejam criados para reunir recursos. A pressão social também é o que define o equilíbrio entre saúde e outras áreas. Não há nenhuma regra objetiva, universalmente válida, para definir, por exemplo, a proporção ideal de saúde / educação. Isso não é uma questão de normas universais, mas de escolhas que a sociedade faz no seu contexto histórico e político. Há um princípio, no entanto, que se aplica a todos os lugares: o equilíbrio escolhido só desfrutará de consenso social se for estabelecido de forma transparente e justa, em um debate social que deve ser protegido contra a influência indevida de interesses especiais.

 

 

Quais são os maiores desafios que países como o Brasil podem enfrentar ao tentar manter o seu sistema de cobertura universal?

 

A caminhada rumo à cobertura universal é sempre uma questão de equilíbrio: entre a extensão da cobertura a mais pessoas, a ampliação da gama de serviços prestados com a melhora da sua qualidade e a redução do custo para os usuários. O que precisa ser feito, e que pode ser feito em um determinado momento, num determinado país, depende do contexto e do caminho percorrido. Não há receitas fáceis: é uma questão de escolhas sociais que exigem constante negociação. As profissões e os lobbies da indústria de serviços de saúde podem facilmente sequestrar esse debate – e os recursos que vêm com ele. Existem três principais atores neste jogo: políticos e tecnocratas, usuários e sociedade civil, e as profissões e os lobbies da indústria de serviços de saúde. É preciso uma forte aliança entre os dois primeiros para manter o sistema na linha. Sem essa aliança o sistema gravitará em torno da comercialização, fragmentação e hospitalocentrismo desproporcional. Serviços básicos centrados em pessoas não acontecem espontaneamente: eles precisam ser construídos e alimentados com investimentos de longo prazo. É preciso liderança e habilidades fortes para construir essas alianças, e exige organizações da sociedade civil e organizações de consumidores fortes para tocar o alarme e, quando necessário, ajudar a moldar um sistema justo que ofereça bom atendimento a todos.

 

 

– Diante do atual cenário de crise econômica mundial, o senhor acredita num fim hipotético dos sistemas universais de saúde?

 

Definitivamente não. A crise econômica, obviamente, leva à tentação de reagir indiscriminadamente com cortes nos gastos sociais. A longo prazo, no entanto, tenho certeza de que a tendência histórica de avançar para a cobertura universal prevalecerá, porque é o que as pessoas querem. Eventualmente, os tomadores de decisão chegarão ao ponto de levar em conta o que as pessoas esperam, ou então eles terão que pagar o preço político. Existem poucas coisas que são tão perigosas para um sistema político quanto tirar benefícios de saúde que as pessoas passaram a ver como um direito. Esse é o principal fator que legitima ou deslegitima o governo. Os tecnocratas muitas vezes enxergam a saúde e os serviços de saúde como uma despesa despropositada. Não é! Trata-se de um investimento em algo fundamental para os cidadãos. A saúde é mais do que uma despesa: é um grande e extremamente importante setor econômico, crucial para a produção de bem-estar e felicidade. Desmantelar o setor da saúde em uma sociedade moderna é um absurdo econômico, e um setor de saúde moderno, que não se baseia na solidariedade, atira no próprio pé.

 

Essa combinação de razões políticas e econômicas para o acesso universal aos serviços de saúde com a proteção social em saúde não pode ser derrotada. Não certamente em um mundo onde os cidadãos e a sociedade civil querem participar das decisões que afetam suas vidas. E, na medida que as sociedades se modernizam, seus cidadãos elevam suas expectativas e tornam-se mais capazes em vocalizá-las. Temos, pois, todos os motivos para ser otimistas.