Entrevista: “No Brasil, existe uma procura desenfreada por vacinação contra Covid-19″

Quais os desafios atuais no combate à Covid-19 no Brasil? E que impacto poderá ter a pandemia no futuro da saúde global? Fernando Cupertino e Fernando Avendanho, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, abordam o contexto brasileiro e refletem sobre as desigualdades globais em saúde

Depois do descontrolo, a esperança. No Brasil, onde os óbitos por Covid-19 chegaram a ser quase 3600 por dia, a situação epidemiológica está hoje mais controlada e os esforços de vacinação avançam – apesar da escassez de vacinas ainda ser um desafio. O país espera vacinar toda a população acima dos 12 anos até ao final do ano.

 

Em entrevista ao Imune.pt, Fernando Cupertino, coordenador técnico do Conselho Nacional de Secretários de Saúde do Brasil, e Fernando Avendanho, assessor técnico da mesma entidade, traçam um balanço dos esforços de resposta à Covid-19 no Brasil e dos desafios atuais (incluindo a preocupação com novas variantes, como a Delta e a Lambda).

Esta é também uma oportunidade de reflexão sobre as “lições” da pandemia para o futuro da saúde global, num quadro de cooperação internacional e entre países de língua portuguesa. “Os estados-membros da CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa] precisam tomar a iniciativa de aprofundar mais essas relações de colaboração”, frisou, a propósito, Fernando Cupertino, que é também coordenador da Comissão Temática da Saúde, Segurança Alimentar e Nutricional dos Observadores Consultivos da CPLP.

O Brasil tem sido um dos países mais afetados pela pandemia, a nível mundial. Como está atualmente a situação epidemiológica do país?

Fernando Avendanho (FA): Assistimos a uma diminuição no número de óbitos – o nosso principal parâmetro –, mas ainda estamos num patamar muito alto, em torno de 700-800 óbitos diários, na média dos últimos sete dias. Chegámos a registar quase 3600 óbitos como média diária em sete dias. Mas a curva está em queda, muito provavelmente por causa das vacinas. Apesar desse movimento de queda, há um excesso de mortalidade em relação a anos anteriores. No Conselho Nacional de Secretários de Saúde, mantemos um painel de excesso de mortalidade no Brasil, a partir da média de óbitos por causas naturais, entre 2015 e 2019, onde incluímos doenças crónicas, doenças transmissíveis e doenças não transmissíveis. E o excesso de mortalidade é de quase mais 400 mil pessoas do que a média anual. Ainda não temos o estudo completo, mas a Covid-19 deve ser a grande responsável direta pelo aumento, fora as outras consequências indiretas na assistência em saúde. É algo que terá consequências também nos próximos anos e está causando, inclusive, uma diminuição da expetativa de vida do brasileiro, em torno de 2-3 anos. É devastador.

Fernando Cupertino (FC): O Brasil teve a infelicidade de enfrentar a pandemia de Covid-19 com um governo que se negou perentoriamente a reconhecê-la. Isso foi um desastre. O resultado são estes mais de 577 mil mortos e mais de 20,5 milhões de brasileiros diagnosticados com a doença. A despeito disso, a descentralização do sistema público de saúde até ao nível municipal evitou um desastre pior. Estados e municípios fizeram muito além da sua capacidade, do seu esforço, para que a situação pudesse ser enfrentada. Uma situação de grande dificuldade e num contexto em que as autoridades da República não reconheceram a gravidade da situação, nem incentivaram as pessoas a adotar as medidas necessárias.

As vacinas vieram dar um apoio fundamental na luta contra a Covid-19. Como está a decorrer o processo de vacinação no Brasil?

FC: Fez-se, ao início, uma campanha de descrédito das vacinas e isso levou a que o Brasil se atrasasse muitíssimo neste processo. Hoje já temos cerca de 185 milhões de doses de vacinas aplicadas, mas ainda falta que cerca de 25 milhões de brasileiros acima dos 18 anos recebam pelo menos a primeira dose. Existem dificuldades no acesso e administração das vacinas. Mas não temos dificuldade de logística, até porque o Brasil tem o histórico de um programa nacional de imunizações extremamente vigoroso e capaz. Em condições normais, somos capazes de vacinar até três milhões de pessoas por dia. Mas é preciso ter vacinas, de que ainda não dispomos em número suficiente.

Qual tem sido o impacto da variante Delta no país?

FC: Já temos a variante Delta presente no Brasil e estamos a monitorizar a evolução da situação com muita preocupação, até com o apoio do escritório da Organização Pan-Americana da Saúde, com a qual trabalhamos diariamente. Ainda não é um problema maior, mas há muitos estudiosos que estão convencidos que irá se tornar um grande problema, sobretudo pela sua elevada transmissibilidade. Se evoluir nesse sentido, poderemos ter novamente uma sobrecarga imensa nos sistemas de saúde.

FA: A variante Delta é extremamente preocupante. Não sabemos exatamente qual o impacto que poderá ter no Brasil, se vai ter o mesmo impacto da variante P1 [ou Gama] ou até mesmo se o grande impacto que tivemos da P1 poderá amenizar um pouco a expansão da variante Delta. É muito difícil identificar a dinâmica do vírus SARS-CoV-2 – e o mesmo se verifica nas variantes. Já temos transmissão comunitária da Delta em estados como o Rio de Janeiro, o Paraná e São Paulo, mas aparentemente ainda não é predominante. Além da variante Delta, estamos atentos à variante Lambda, que tem sido predominante no Peru e causa apreensão na região amazónica. A variante Lambda ainda não é oficialmente uma variante de preocupação, mas estamos em alerta porque pode ter um impacto grande na região.

Existem grandes diferenças entre estados na resposta à pandemia?

FA: Existem diferenças até porque a própria população de cada estado é muito diferente. Consideramos que todos os estados estão, de forma geral, sob o mesmo risco de Covid-19. A dinâmica de casos é muito rápida e tudo muda muito rapidamente. Por isso, não temos uma visão de vacinar mais um estado do que outro. Apenas fizemos isso no início do ano com o estado do Amazonas, para dar resposta ao aparecimento da variante P1. Hoje trabalhamos com o mesmo cenário epidemiológico para todos os estados. A diferença que temos hoje na cobertura vacinal resulta da vacinação de grupos prioritários, no início do processo. Os estados da região sul e sudeste do Brasil têm uma população mais idosa, mais profissionais de saúde e mais pessoas com comorbidades. Como têm uma percentagem maior de grupos prioritários, acabaram por avançar mais no início da vacinação, mas estamos a tentar compensar isso agora. Terminámos, entretanto, os grupos prioritários e a vacinação avança agora por faixa etária.

FC: Aproveito para fazer um destaque muito grande ao nosso sistema público de saúde, que garante a oferta, a logística e a administração de vacinas. É uma união de esforços ao nível federal, dos estados e dos municípios. Prevê-se que, até ao final deste ano, a nossa população acima dos 12 anos esteja inteiramente vacinada.

Há muitos brasileiros que hesitam ou recusam ser vacinados?

FC: Pelo contrário. O que há é uma oferta insuficiente de vacinas e um grande número de pessoas que desejam ser vacinadas. Vemos, no entanto, algumas falhas nas estratégias de vacinação que acabam por privilegiar uma camada da população e prejudicar, como sempre, os mais vulneráveis. Por exemplo, muitos municípios, sobretudo em cidades maiores, adotam a vacinação em parques de estacionamento, num modelo drive-through. Só que as pessoas pobres que não dispõem de automóvel não conseguem chegar lá. Mas no Brasil, felizmente, não há essa oposição às vacinas que vemos noutros países.

FA: Apenas conseguiremos analisar o real impacto das estratégias e da cobertura depois de terminar o processo de vacinação. Agora, no Brasil, existe uma procura desenfreada por vacinação contra Covid-19. As pessoas ficam cinco ou seis horas numa fila para poderem ser vacinadas. Mas só realmente quando fecharmos o processo poderemos perceber a percentagem de pessoas que ficaram sem as vacinas – ou por opção ou por dificuldade de acesso.

E qual a atitude geral em termos comportamentais?

FA: O comportamento das pessoas está cada vez mais suscetível à transmissão do vírus. Até porque não existe incentivo ao distanciamento social. O uso de máscara é obrigatório, mas muitas pessoas usam-na de forma inadequada. No imaginário das pessoas, o impacto da pandemia não é assim tão grande, apesar de ser um impacto devastador. Isso dificulta muito qualquer tipo de ação. E como a comunicação destes riscos não é muito boa – em muitos casos é praticamente ausente –, vemos que as pessoas acreditam mesmo que a pandemia acabou. Já há festas marcadas para o fim da pandemia. Mas ninguém avisou o vírus.

Uma das grandes questões globais que se coloca é a desigualdade no acesso equitativo e justo às vacinas contra a Covid-19. Como é que se pode caminhar para uma saúde mais igualitária?

FC: Há um ditado aqui no Brasil que diz “em tempos de farinha pouca, o meu pirão primeiro”. Penso que, no decorrer das últimas duas décadas, as sociedades tornaram-se cada vez mais egoístas, mais individualistas. O que fizeram alguns dos países com mais recursos? Adquiriram stocks de vacinas que são suficientes para vacinar três vezes a totalidade da sua população. Enquanto isso, há países, nomeadamente no continente africano, que não têm sequer condições para receber as vacinas porque não as podem armazenar à temperatura certa. Que garantia têm os países que lograram êxito com as suas vacinações se outros ainda têm o vírus a circular e isso facilita o surgimento de novas variantes? Há uma falta de lógica em tudo isto. Se, entre as nações, não se cristalizar a noção de que a figura do Estado existe para corrigir desigualdades e promover o bem comum – e se essa noção não se sobrepuser aos interesses meramente económicos – penso que o mundo entrará numa espiral de aprofundamento dos seus problemas, o que coloca em risco a própria existência humana.

FA: As respostas que vamos tendo em relação à Covid-19 não são diferentes das respostas a outros problemas que tivemos no passado. Aconteceu o mesmo em relação à Influenza, no início do século passado. Na altura, os empresários não queriam de forma alguma parar os seus negócios – assim como não quiseram agora – porque não podiam correr o risco de perder os seus lucros. E, com isso, a vida humana começa a perder valor.

Que “lições” da pandemia podemos tirar para o futuro da saúde global, sobretudo em termos de cooperação internacional?

FC: Das lições que ficam, a primeira é que precisamos aprimorar as nossas vigilâncias em saúde. Outras pandemias surgirão, de certeza. Talvez não daqui a 10 anos ou 30 anos, mas um dia irão surgir. Temos de estar mais preparados. Além disso, a vigilância não é só para pandemias, há outras situações de saúde que necessitam destes mecanismos. Outra lição: é necessário refrear um pouco esta história de nacionalismo exacerbado, no qual os países enxergam primeiro as suas próprias conveniências e não procuram uma relação solidária e colaborativa com os seus vizinhos e com a comunidade global. Até porque as doenças não viajam mais de caravela, viajam em aviões. Não há nenhum país do mundo que possa sentir-se seguro. Estamos hoje todos a habitar uma aldeia global e precisamos ter essa visão. Por fim, precisamos de combater as desigualdades – e as desigualdades são combatidas fora da área da saúde. A saúde é o estuário onde chegam as consequências das desigualdades. A pobreza, a desnutrição, a falta de habitação, a falta de estudos… todos estes elementos fazem com que a saúde das pessoas se torne mais vulnerável.

FA: A pandemia mostrou-nos também a necessidade de preparar os governantes para que saibam que situações emergenciais acontecem e que é preciso ter uma resposta uníssona e muito rápida. E ter a transparência para comunicar ao mundo o que está a acontecer. A própria Organização Mundial de Saúde, tal como os governos, ficou bastante perdida no que estava a acontecer, perante esta situação extrema. No futuro, as decisões têm de ser tomadas mais rápido, para que consigamos também sair destas situações o mais rápido possível. As hesitações propiciaram o grande aumento da doença, de um vírus que saiu rapidamente de uma cidade no interior da China para todo o mundo. Portanto, precisamos de mais transparência, mais comunicação e investimento em tecnologia. E o mundo tem de ser mais harmonioso nestes esforços.

Qual poderá ser o papel da CPLP em termos de saúde global, neste contexto pós-pandemia?

FC: No âmbito da CPLP, os países precisam fazer com que essas relações existam de maneira mais intensa, mais interdependente, mais harmónica. E para isso é preciso ação política. Os estados-membros da CPLP precisam tomar a iniciativa de aprofundar mais essas relações de colaboração. Prefiro “colaboração” a “cooperação”, em que alguém com mais dinheiro chega e diz como é que as coisas devem ser feitas. Não é isso. A colaboração é a capacidade que temos, em pé de igualdade, de aprender uns com os outros e de construir um caminho comum, com resultados que tragam bem-estar e felicidade a todos.

Fonte: Imune.pt