O perigo da arrogância no SUS

Se estivéssemos na idade média, poderia se dizer que as bruxas estão soltas. Baseado nessa época, os fundamentalistas usam o nome de Deus para matar, se as pessoas não fizerem exatamente o que essas criaturas pensam e defendem.

Pois bem, guardadas as devidas proporções, ou não, os fundamentalistas atuais, ao defenderem seus pontos de vistas e corporativismos, afirmam, em nome da população brasileira, que a PNAB está matando a APS e o SUS.

Voltando a idade média e as bruxas, até mesmo nessa época, o ato de curar as pessoas não era privativo, embora muitos tenham sido condenados a morte por bruxaria.

Faço essas alusões, tendo em vista a arrogância de alguns iluminados que representam categorias profissionais que acham que a saúde e a doença das pessoas são de sua única propriedade e também aquelas que têm certeza que a sua existência é a única possibilidade do SUS continuar existindo.

Enquanto indicadores de saúde, como cobertura vacinal, e de Papanicolau, por exemplo, despencam a cada ano, o crescimento da prevalência de doenças como a sífilis congênita, esses iluminados se acham no direito de tentar proibir que outros profissionais façam seu trabalho, comprometendo assim, o atendimento do tão sofrido povo brasileiro que é atendido nas Unidades Básicas de Saúde, sua única opção.

Os que representam os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) -categoria que teve e tem um papel importantíssimo na organização da APS brasileira-, acham que sem eles o SUS não tem salvação.

Nos tempos atuais, onde predominam as condições crônicas, nenhum profissional sozinho dá conta de resolver os inúmeros problemas que essas condições favorecem.

Vejamos a situação de uma pessoa idosa que tem hipertensão arterial e diabetes, por exemplo. Precisa da atenção e cuidados de uma equipe multi e interdisciplinar, sob pena de peregrinar nos serviços de saúde e não ter o seu problema resolvido, terminando com internações frequentes e sem qualidade de vida.

Em 1991, quando o Programa dos Agentes Comunitários de Saúde (PACS) foi criado, os agentes de saúde tinham que morar na sua microarea, conhecer bem a sua comunidade, ter liderança e ser o elo entre a família e o serviço de saúde; não era admitido que se envolvessem com política partidária, justamente para ter legitimidade junto à população. Com o tempo, quando esses critérios foram pouco a pouco sendo deixados de lado, os ACS usaram, foram usados e assim continuam, por políticos que só pensam no voto, desvirtuando assim, o papel desses atores.

Evidentemente que nesse imenso país, existem muitos agentes que fazem um trabalho sério e que faz a diferença para a população.

Por que será que a Enfermagem, categoria mais numerosa da saúde (cerca de 2.400.000 profissionais) não consegue que esses mesmos políticos a apoiem e aprovem as 30 horas? Por que tratar tão diferente as demais categorias de profissionais de saúde?

Tomando emprestado as palavras do presidente do CONASEMS, Mauro Junqueira, a enfermagem não consegue esse apoio porque não tem tempo de fazer loby no Congresso Nacional, precisa trabalhar, cuidar das pessoas, que não podem esperar.

Na última terça-feira, em uma Audiência Pública, na Câmara dos Deputados, um ACS disse que se não conseguirem derrubar a PNAB, pelo menos nos 5 pontos que apontam, estão prontos para a guerra. Isso mesmo, guerra!

No outro dia, um médico postou nas redes sociais, com palavras grosseiras e mal escritas, que enfermeiro serve pra limpar “bunda”. Quanta arrogância e imaturidade….

Como se não bastasse o subfinanciamento, o desfinanciamento continuo por parte de todos os governos do ente federal desde a criação do SUS, a politicagem como principal critério na escolha de muitos gestores da saúde, e a crise moral e ética que assola o país, o sistema ainda passa por descabimentos como esses, em nome da população.

Os representantes dos ACS querem ditar as regras…..
Os do CFM, na contra mão dos países modernos, querem controlar as outras profissões de saúde.

Na era da inteligência artificial, não cabe reserva de mercado, diagnóstico e tratamento são cada vez mais realizados por robôs, que podem inclusive limpar “bunda”, mas o cuidado, o respeito, a dignidade e o conforto na hora que qualquer mortal precisa, inclusive o médico grosseiro das redes sociais, os enfermeiros aprendem na sua formação.

É preciso um pouco de bom senso e lucidez. Essas atitudes corporativistas prejudicam a população, contribuem para o esfacelamento do SUS, e não tem coerência com a modernidade.
Discordar é salutar e é energia para a democracia.

A arrogância e a intolerância são um perigo para a sociedade e para o SUS em particular. A crise pode ser uma oportunidade para superar os problemas, com união e trabalho.

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*Maria José de O Evangelista*
Enfermeira, Sanitarista, Especialista em Administração Hospitalar e Gestão em Saúde Coletiva e Mestra em Ciências da Saúde