Renilson Rehem: “Se o orçamento da Saúde dobrar da noite para o dia, haverá desperdício”

Por CRISTIANE SEGATTO

Revista Época

Foto: ASCOM/Assembleia Legislativa do Estado de SP
Foto: ASCOM/Assembleia Legislativa do Estado de SP

O médico sanitarista diz que o SUS necessita de mais dinheiro, mas antes a gestão precisa melhorar

O médico sanitarista Renilson Rehem é um histórico defensor do Sistema Único de Saúde (SUS). Entre 2007 e 2009, ele foi secretário adjunto da Saúde do governo paulista. Antes disso, havia ocupado a Secretaria Nacional de Assistência à Saúde no governo Fernando Henrique. Atualmente, Rehem dirige o Hospital da Criança de Brasília José Alencar e preside o Instituto Brasileiro das Organizações Sociais de Saúde (Ibross).

Nos últimos anos, mais de 200 municípios administrados pelos mais diferentes partidos firmaram contratos de gestão com instituições sem fins lucrativos para o gerenciamento de serviços públicos de saúde. Embora as OSS sejam consideradas um bom instrumento para melhorar a atenção no SUS, escândalos recentes comprometem a credibilidade desse modelo. Nesta entrevista, Rehem fala sobre a crise da saúde pública e defende a adoção de um selo de qualidade para identificar as organizações sociais de saúde confiáveis.

ÉPOCA: Qual é a sua visão sobre a PEC 241? A Saúde vai perder recursos?
Rehem
: Qualquer família ou empresa que não tem dinheiro para gastar não pode gastar. Tem de ter limites. Nunca vou defender a redução do orçamento da Saúde, mas acho que está havendo uma confusão na polêmica sobre a PEC 241. O controle dos gastos públicos como um todo não significa necessariamente uma redução dos recursos da Saúde. A coisa não é linear. O governo poderá rever os gastos e discutir quais são as áreas que precisam receber uma fatia maior dos recursos.

ÉPOCA: A falta de dinheiro é o maior problema do SUS?
Rehem
: O subfinanciamento do SUS é verdadeiro. O que o Brasil investe em Saúde não sustenta um sistema como esse. Mas há outra questão igualmente importante: a gestão. Digo sempre que se Martin Luther King tinha um sonho, eu tenho um pesadelo. O meu pesadelo é que o orçamento público da Saúde dobre da noite para o dia. Se o orçamento dobrar, da forma como o sistema funciona hoje, haverá desperdício. O Brasil vai jogar dinheiro fora.

ÉPOCA: Se dobrasse, o que aconteceria?
Rehem
: Os governantes iriam construir um monte de hospital. Isso não resolve o problema. Precisamos de mais dinheiro, mas antes precisamos saber como usar bem esses recursos. Enquanto não tivermos um sistema de atenção primária funcionando adequadamente, o diagnóstico dos hipertensos e diabéticos continuará a ser feito apenas quando ele chega a uma emergência. É uma irracionalidade porque isso é pior para o paciente e mais caro para o sistema.

ÉPOCA: Por que é tão difícil mudar esse quadro?
Rehem
: A maneira de gerir as unidades é um problema muito sério. Todo mundo que teve a oportunidade de viver a administração direta na saúde sabe que não tem como conseguir resolver os problemas.

ÉPOCA: Por que não?
Rehem
: Um dos grandes problemas da administração direta é a área de recursos humanos. Tem gente que burramente acha que o problema é salário. Aí aumenta o salário e não resolve o problema. Salário é uma condição necessária, mas não é suficiente. Se você tiver um salário razoável e boas condições de trabalho, vai conseguir manter os profissionais.

ÉPOCA: Sem condições materiais, os profissionais não conseguem ver sentido no trabalho?
Rehem
: Isso mesmo. A pessoa vai dar um plantão e falta tudo. Falta material, falta colega para dividir o plantão, falta enfermeira. Nos serviços de saúde da administração direta, essa questão dos recursos humanos é extremamente complicada. O gestor precisa ter liberdade para contratar. Fala-se muito em subfinanciamento e fraudes, mas pouco se fala sobre desperdício. Se eu estou com tudo pronto no hospital para fazer uma cirurgia e essa cirurgia não acontece, quanto dinheiro é jogado fora?

ÉPOCA: Por que as cirurgias não acontecem?
Rehem
: Isso ocorre por várias razões. Às vezes o cirurgião aparece, mas a instrumentadora não. Ou eles estão lá, mas a roupa e o material não foram esterilizados. Ou faltou anestésico. Ou um fio especial para sutura. Ou o ar-condicionado quebrou. No serviço público, quando a cirurgia acontece é quase um milagre. É tanta coisa que deu certo ao mesmo tempo… Parece que Deus botou a mão ali e não deixou escapar nada. Há uma quantidade absurda de cirurgias suspensas e não se fala sobre isso.

ÉPOCA: Os serviços geridos pelas Organizações Sociais de Saúde (OSS) também têm problemas?
Rehem
: As primeiras OSS foram criadas nacionalmente ainda na gestão Fernando Henrique. Depois, vários partidos adotaram o modelo. Hoje ninguém pode dizer que é uma coisa tucana. Mais de 200 municípios de 23 estados têm OSS. O que nos preocupa é que a coisa cresceu muito. A maioria dos estados e municípios que celebram contratos de gestão não sabe o que está fazendo. Não basta celebrar o contrato. É preciso se organizar para que ele seja cumprido.

ÉPOCA: A credibilidade do modelo das OSS está ameaçada?
Rehem
: As instituições sérias ficaram preocupadas quando começaram a surgir escândalos. Recentemente, estourou um em São Luís. Há duas semanas, outro no Amazonas. No Rio de Janeiro também aconteceu. Por tudo isso, decidimos criar uma entidade que defenda o modelo e garanta uma certificação às instituições que trabalham direito. Nesse crescimento desregrado, começaram a surgir entidades que se autodenominam OSS, mas que a gente acha que não são OSS.

ÉPOCA: O que elas são?
Rehem
: São empresas, mas que do ponto de vista estritamente formal se constituíram como associação civil sem fins lucrativos e se qualificaram como OSS. Só que aí existem diversos mecanismos para lucrar – direta ou indiretamente. Isso é uma enorme preocupação. Um escândalo de desvio de dinheiro público numa OSS atinge a credibilidade de todas as outras.

ÉPOCA: Se um empresário mal-intencionado quiser entrar nesse negócio de OSS, como ele consegue se qualificar para a disputa?
Rehem
: Empresário que entra nisso pensando em ganhar dinheiro é bandido. Não pode ser um empresário honesto. Pela OSS ele não pode auferir lucro nem qualquer tipo de vantagem. Se ele for desonesto, ele pode pensar em fundar uma OSS com esse objetivo. Não é difícil fazer isso. Se ele tiver uma distribuidora de medicamentos, por exemplo, pode fazer com que a OSS compre os produtos dele.

ÉPOCA: Se o empresário estiver num conchavo com o secretário de Saúde, o governo relaxa na fiscalização?
Rehem
: Sim. Aí, o secretário deixa de controlar o uso do dinheiro e as metas de produtividade como deveria. É possível existir esse tipo de fraude, mas também é perfeitamente possível evitá-la.

ÉPOCA: Com a certificação, vocês vão garantir que aquela OSS é séria?
Rehem
: Exatamente A ideia é começar a certificação no próximo ano. Vamos avaliar como a entidade compra material, como presta contas à sociedade, se divulga tudo num site com total transparência. As associadas do Ibross terão um prazo para se submeter à certificação. Quem não aceitar será obrigado a sair. Com a certificação, vamos apontar quais são as OSS sérias. O governante que faça a escolha dele. Se ele escolher uma OSS de fundo de quintal, criada ontem, problema dele. Aí já começa mostrando qual é o real objetivo dele.

ÉPOCA: As OSS vão aceitar participar desse processo?
Rehem
: Quando começamos essa conversa, não imaginei que teríamos uma guerra tão sanguinária como estamos vendo. Quando a gente der esse segundo passo, vai ser muito pior. Tenho apanhado muito dos sindicatos e de todo mundo que pretende manter a situação atual. Essa situação caótica do sistema público de saúde interessa a muita gente. Interessa, por exemplo, a quem recebe salário e não trabalha. O caos interessa a quem vende produto vagabundo, dá uma propina e recebe dinheiro público. Interessa a muitos bandidos.

ÉPOCA: O Ministério Público de Contas do Distrito Federal investiga suspeitas de irregularidades em contratos do Palácio do Buriti com o hospital que o senhor dirige. O senhor nega qualquer ato em desacordo com as regras. O que houve?
Rehem
: Não há nenhuma acusação relacionada com a gestão do hospital. As contas de 2011, 2012 e 2013 foram analisadas e aprovadas. Não há nada de concreto. Falam de coisas genéricas porque estamos vivendo duas guerras. Uma é política, entre oposição e governo. A outra é ideológica, contra o modelo das OSS.

ÉPOCA: Como são essas guerras?
Rehem
: Quando o Ibross começou a surgir, comecei a apanhar. Inventaram um dossiê e disseram que sou dono de cinco empresas. Uma dessas empresas citadas é a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano [Emplasa]. É uma empresa pública. Fui do Conselho de Administração, mas não sou dono. Não sou sócio de nenhuma empresa. Por que dizem isso? Para me caracterizar como empresário. Se eu fosse empresário e estivesse nisso, poderia estar mal-intencionado. Imagino que, quando lançarmos o selo de certificação, a resistência será ainda maior.

ÉPOCA: Sozinha, a administração direta não dará conta de fazer tudo o que precisa ser feito para melhorar a saúde brasileira?
Rehem
: O modelo das OSS é o melhor que existe hoje, mas não é solução mágica. Antes de celebrar um contrato de gestão, o governante precisa saber que unidade é essa e o que ele quer que ela produza. Essa é a parte que o Estado não pode delegar a ninguém. É o Estado quem tem de definir isso, pensando na perspectiva do conjunto, da rede. Ele precisa ser capaz de definir metas e cobrá-las. Precisa traçar metas quantitativas e qualitativas e prestar contas todo mês.

ÉPOCA: O gestor público pode saber a qualquer momento como está o uso do dinheiro público pela OSS?
Rehem
: Sim. Ela é obrigada a ter uma única conta e movimentar o dinheiro naquela única conta. Habitualmente isso não é feito. Se eu fosse secretário e você tivesse uma OSS, eu poderia pedir para você uma senha da conta e acompanhar o extrato em tempo real. No hospital que eu dirijo, eu não teria a menor dificuldade de entregar isso ao secretário. Para o Estado, é muito mais fácil acompanhar o gasto do dinheiro numa OSS. Na administração direta, a coisa é muito mais confusa.

ÉPOCA: Quem fiscaliza essas contas?
Rehem
: Primeiro a Secretaria de Saúde e depois o Tribunal de Contas. Não tem nenhuma justificativa para uma secretaria dizer que só descobriu um rombo numa OSS depois de dois ou três meses. Esse acompanhamento pode ser feito cotidianamente. Em tempo real.

ÉPOCA: E a sociedade? Como ela pode acompanhar?
Rehem
: Esse é o ponto que achamos que precisa ser mais desenvolvido. Pregamos que toda OSS tenha um site e publique ali os relatórios, suas compras, suas contratações, dê o máximo de transparência possível. A OSS não pode ter um dono. Se ela é da sociedade, tem de ter um conselho plural e prestar contas sempre.