Para entender o (sub)financiamento do SUS

Matéria extraída da edição n. 116 da Revista Radis.

 

Os males do (sub)financiamento do SUS estão em um sistema tributário injusto e complexo, na necessidade de se rever a distribuição de competências entre estados, municípios e União, após a Constituição de 1988, e na “lógica financista” que pauta os investimentos do país. Some-se a isso o fato de o Brasil ser o único país com sistema universal de saúde em que o gasto privado é maior que o público. As conclusões partem do olhar de economistas e sanitaristas, que vêm buscando analisar, em estudos, artigos na imprensa e participação em seminários, onde está o nó da falta de recursos do sistema de saúde brasileiro.

Salvador Werneck, pesquisador do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), que vem estudando os aspectos econômicos do país desde que iniciou sua tese de doutorado — Desenvolvimento econômico e reformas institucionais no Brasil: considerações sobre a construção interrompida, defendida em 2007 na UFRJ —, observa que o sistema tributário brasileiro tem carga alta de impostos e má qualidade de serviços à população. Para ele, ainda, o sistema federativo brasileiro, no que diz respeito às relações entre estados, municípios, União e Distrito Federal, e, consequentemente, as fontes de recursos para atender a essas prerrogativas, precisa de “aperfeiçoamentos urgentes”.

A estrutura federativa que compõe o país está na base da formação do SUS, explica Salvador, que participou de seminário sobre o financiamento do SUS no Rio de Janeiro em novembro de 2011 — algumas semanas antes da votação da Emenda Constitucional 29 (Radis 113, seção Toques), no calor dos debates a respeito da rejeição parlamentar ao novo imposto que seria criado para substituir a CPMF, com objetivo de conter a perda de verbas para a Saúde.

Resgate social

Especialista em sistemas de financiamento de políticas públicas e Seguridade Social, o economista observa que o SUS foi concebido em 1988 como essencialmente descentralizado, para assegurar um caráter democrático e permitir melhor controle social. “Predominava o sentimento de que democracia e descentralização deveriam estar associadas”, ressalta em sua tese de doutorado, que aponta, ainda, que a ideia, na época, era que o domínio dos recursos tributários pelos estados e municípios permitiria “o resgate social da parcela da população brasileira alijada dos ganhos do desenvolvimento no período militar”. O movimento idealizado naquele momento objetivaria, então, garantir a descentralização fiscal e criar recursos adicionais para atender à expansão das políticas sociais à totalidade da população, explica.

Para ele, o resgate da dívida social ainda está longe de se dar e os governos não apresentam o quadro idealizado pelos constituintes. “Estados e municípios enfrentam dificuldades financeiras e não cumprem satisfatoriamente o papel que deles se esperava”.

Crise na Federação

Salvador Werneck considera o problema do financiamento do setor saúde apenas “mais um entre vários produtos de uma crise na Federação”. Ele explica que as decisões da Constituição de 1988 levaram o Governo Federal a reagir contra a perda de recursos e a promover a descentralização de encargos, ou seja, foram aumentadas as obrigações e atribuições de serviços dos estados e municípios. Os municípios ganharam atribuições, mas sua arrecadação de impostos não cresceu na mesma proporção.

“Parece inegável o descompasso entre a maior responsabilidade e a capacidade financeira dos municípios no atendimento satisfatório das demandas sociais”, resume Salvador, apontando que o setor público brasileiro foi dotado de um grau de descentralização semelhante ao das economias avançadas, mas nestas o dinheiro dos impostos fica em sua maior parte nas unidades menores do território, enquanto no Brasil a União é a maior arrecadadora.

Confusão de papéis

O autor menciona três causas, que, segundo ele, contribuíram para que não se configurasse plenamente a idealização da Constituição de 1988 de tornar os municípios entidades capazes de atender adequadamente às demandas por serviços sociais.Em primeiro lugar, o governo aprovou o Fundo Social de Emergência — a atual Desvinculação das Receitas da União (DRU) —, desvinculando 20% das receitas das transferências constitucionais. “Esse movimento, visto inicialmente como emergencial, ganhou caráter perene e contribuiu para ampliar o domínio federal sobre os recursos fiscais”, analisa. Em segundo lugar, o baixo crescimento da economia brasileira, que, nas décadas passadas, impediu que a receita fiscal própria dos municípios aumentasse mais do que o correspondente aos tributos próprios. Finalmente, as altas taxas de juros provocaram aumento do serviço da dívida e contribuíram para as dificuldades financeiras de municípios, sobretudo, as capitais e as unidades mais importantes economicamente, que tiveram maior acesso a operações de crédito.

Se, por um lado, analisa Salvador, ocorreu o processo de descentralização fiscal, com os municípios assumindo maior peso no atendimento das demandas sociais e nos gastos totais, por outro, vários deles vivem em dificuldade financeira e não apresentam condições de responder adequadamente à demanda de serviços que recai sobre eles.

Além da confusão de papéis entre os entes federados, Salvador aponta como problemas a carga tributária elevada, “verdadeiro cipoal de impostos altos, injustos e de difícil fiscalização”; a regressividade, isto é, quanto menos se ganha mais se paga, em proporção; a falta de contrapartida de prestação de serviços de alta qualidade em muitos setores; a alta complexidade do sistema; e a tendência a conflitos distributivos como “guerras fiscais”. 

‘Tragédia’

A aprovação da Emenda Constitucional 29 sem o comprometimento de a União participar com 10% da sua arrecadação para a Saúde (Radis 113) é vista como grande derrota por sanitaristas, entre eles Lígia Bahia, vice-presidente da Abrasco, presente ao seminário de novembro, que levantou as questões federativas e tributárias como essenciais ao debate da Saúde. Ela considerou uma “tragédia” a manutenção da indexação da despesa da União com a Saúde pela variação do PIB do ano anterior. “Houve derrota de todos que defendem o SUS. Como priorizar a saúde sem ser prioridade orçamentária de fato?”, questionou ela depois, em entrevista ao jornal O Globo (30/01, íntegra na seção Radis na Rede, do site do RADIS).

Lígia aponta um aspecto positivo do texto aprovado: “Foi bom terem definido o que são gastos com Saúde”, considerou, referindo-se ao trecho que objetiva impedir que se considerem gastos com merenda escolar, saneamento, coleta de lixo e restaurantes populares como gastos com saúde. A questão é que a aprovação da EC 29 tal como ocorreu equivale na prática a dizer que a União, só aumentará o que gasta com saúde na mesma proporção que houver crescimento econômico. O gasto relativo, portanto, não aumentará.

Reportagem publicada em O Estadode S. Paulo informa que o gasto público em Saúde do país é 41,6% do gasto total. Essa participação é considerada baixa se comparada à de outros países como os da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Neles, a participação das fontes públicas no financiamento do sistema representa cerca de 70% da despesa total, variando de 67,5% na Austrália a 84,1% na Noruega. Sergio Piola, coordenador da área de Saúde do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), resumiu o problema em declaração recente na imprensa: “O Brasil é o único país com sistema universal de saúde onde o gasto privado é maior que o público. É muito pouco para o país ter, efetivamente, um sistema de cobertura universal e atendimento integral”.

Falácia

O Brasil, conforme estima o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), tem um dispêndio total em saúde (público e privado) equivalente a 8,4% do PIB, percentual baixo quando comparado ao dos Estados Unidos (15,47%), mas próximo ao de outros países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), como o Reino Unido (8,4%), Espanha (8,5%), Canadá (10,1%) e Austrália (8,9%), que também possuem sistemas universais.

Sérgio Piola diz que é falácia a crítica contra a má gestão dos recursos do SUS como maior responsável pela baixa qualidade dos serviços. Para ele, a melhoria do gasto público deve ser um esforço permanente de todos os gestores, mas até para resolver alguns problemas de gestão seriam necessários mais recursos. A diferença de oferta de serviços entre as regiões brasileiras, por exemplo, para ele só se resolveria com mais investimentos. “A população que depende do SUS no Sul e no Sudeste recebe muito mais serviços que os moradores do Norte e do Nordeste”, considerou.

O professor do Instituto de Economia da Unicamp Luiz Gonzaga Belluzzo apontou, no mesmo seminário em que Werneck abordou o sistema tributário, as razões pelas quais, a seu ver, a lógica econômica fundamenta a opção política por uma desconstrução do sentido original do SUS.

Segundo ele, o governo vem tomando decisões que mostram a preponderância da lógica financista, posta em patamar acima das reais necessidades do cidadão. Belluzzo analisou a conjuntura política e econômica da crise mundial, especialmente desde o estouro da bolha imobiliária nos EUA e a falência de grandes bancos até o momento crítico vivido hoje pela Europa.

Para Belluzzo, vivemos “um ponto de mudança”. Ele considera que “regredimos na questão pública, do investimento público”. E observa: “As pessoas estão percebendo que não são os economistas que vão dizer como deve ser daqui para frente, porque eles não foram capazes de predizer a crise que estava para acontecer, debaixo dos seus narizes”. A universalidade do SUS é ponto-chave na solução de todo esse impasse, afirma. “Política só para os pobres é uma política pobre”.

 

Autor: Elisa Batalha – Revista Radis