
A política de saúde mental no país é resultado de uma longa evolução de ações de inclusão e promoção de equidade junto à população que apresenta sofrimento mental. Sua origem está nos movimentos sociais que surgiram e cresceram no período da ditadura e, após uma série de experiências municipais durante o período de democratização, tornou-se política de Estado a partir da sanção da Lei 10.216, de 6 de abril de 2001, que reorientou o modelo assistencial da centralidade hospitalar para uma rede comunitária, com foco voltado ao cuidado em liberdade. Em 2002, foi publicada a Portaria GM/MS 336, de 19 de fevereiro, dando origem ao financiamento federal aos centros de atenção psicossocial (CAPS), que se tornaram o principal dispositivo assistencial desta nova rede. O modelo teve como foco de atenção o fechamento de leitos em hospitais psiquiátricos e o enfrentamento aos processos de institucionalização. Nesse sentido, foram criadas residências terapêuticas, formas de indenização para egressos de hospitais psiquiátricos e políticas de geração de renda para usuários da rede de saúde mental. O foco dado aos processos de desinstitucionalização foi predominante até metade da década de 2000, quando se identificou a expansão do uso de crack no país. Isto desencadeou pressão da opinião pública para a ampliação de oferta de cuidado para usuários de drogas. Como desdobramento, foram criados dispositivos, como as unidades de acolhimento e CAPS AD 24 horas. Essas estratégias foram consolidadas na Portaria GM/MS nº 3.088, que instituiu a rede de atenção psicossocial em 2011.

Essa brevíssima descrição do desenvolvimento e consolidação da política de saúde mental no país mostra sua capacidade de resposta a novos fenômenos que apresentaram interface com o tema. Ao se tornar a referência para uma política de Estado, houve uma adequação progressiva aos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS). No sentido de expandir acesso e criar estratégias de cuidado integral, ao longo da primeira década do século foram sistematizadas práticas de saúde mental na atenção primária, desenvolveu-se estratégias e princípios de atenção a situações de crise Neste período houve uma grande expansão na produção de conhecimento no campo e desenvolvimento de tecnologias leves. Ainda que tenha havido tal adequação da política às necessidades de assistência durante sua consolidação como modelo, essa capacidade adaptativa diminuiu especialmente após o período da pandemia. Ao longo dos últimos 5 anos, o país assistiu a uma explosão de novos fenômenos relacionados à saúde mental: epidemia do uso de psicotrópicos, medicalização da infância e adolescência, expansão da abordagem religiosa de fenômenos associados ao uso de álcool e drogas, do aumento de violência nas escolas e, mais recentemente, uso compulsivo de jogos em celulares (Bets). A dificuldade em reagir a novas realidades faz com que gestores estaduais e municipais desenvolvam iniciativas próprias como resposta a novos fenômenos. Em decorrência da ausência de diretrizes, e com base em relatos de coordenadores estaduais de saúde mental, municípios criam modelos próprios de atenção aos transtornos de espectro autista. Da mesma forma, em vários estados encontra-se em curso um processo sistemático de institucionalização de pessoas em situação de rua. Identificou-se junto a coordenadores estaduais a criação de comunidades terapêuticas (CTs) voltadas exclusivamente a internações por determinação judicial.

As CTs têm se tornado progressivamente a principal oferta a usuários de álcool e outras drogas em municípios de menor porte mediante a insuficiência de ofertas na atenção primária e impossibilidade de abertura de serviços voltados a usuários de drogas. As CTs, além de não apresentarem referência populacional, dispõem de financiamento de várias instâncias do poder público, sem que exista um modelo de fiscalização vigente. O financiamento de comunidades terapêuticas repete uma prática da saúde pública do período pré redemocratização de 1988: paga-se a rede privada por procedimentos, sem análise de demanda, sem fiscalização, sem dimensionamento ou planejamento com base epidemiológica. Mesmo considerando o impasse na tipificação das CTs como dispositivos de saúde ou não, o fato é que usuários do SUS utilizam desses serviços, estando sujeitos a todos os desdobramentos negativos do uso. Não reconhecer e deixar de enfrentar essa realidade, no SUS, configura clara omissão.
Um dos atributos da expansão da política de saúde mental no país no início do século e que tornou possível sua adequação ao SUS foi sua capacidade de diálogo com os territórios e constante análise do cuidado que era ofertado pela rede. Hoje, a forma de análise e o acompanhamento da política como um todo se assemelham muito com o modelo adotado há mais de 20 anos. A publicação recente da “saúde mental em dados” utiliza ainda a relação entre município e número de serviços cadastrados como referencial de assistência, ignorando a noção de rede, de regionalização, de adensamento de número de profissionais, das práticas vigentes e de indicadores de resultados. Ao longo dos últimos 10 anos se evidenciou a forte associação entre aspectos estruturais da sociedade brasileira, como racismo, desigualdade de gênero e sofrimento mental. Isto se reflete epidemiologicamente, por exemplo, nas altas taxas de suicídio entre jovens negros e populações originárias, altas taxas de feminicídio, uso crônico de psicotrópicos entre mulheres, altas taxas de homicídio entre pessoas trans. E ainda que haja um discurso de compromisso com estas populações, ao longo dos últimos anos não foi realizada qualquer ação de saúde mental voltada para elas.

A dificuldade em responder aos novos fenômenos citados se associa ainda a uma postura conservadora de restringir a política ao enfrentamento ao manicômio, processo central há 20 anos, mas que não mais se configura como urgência se comparado à realidade atual da saúde mental no país. Da mesma forma, elementos como dimensionamento da rede, que faziam sentido há mais de 23 anos, quando foram definidos por portaria, passaram a ser considerados como norma e deixaram de ser problematizados. Hoje, a política de saúde mental no país soma características de anacronismo- na ausência de respostas a problemas contemporâneos- de isolamento- com ampla dificuldade no desenvolvimento de políticas intersetoriais- e retraimento- com abandono de pautas nas quais era protagonista- como o cuidado a populações em situação de rua. A luta antimanicomial no Brasil foi fundamental por inspirar uma política afirmativa e de inclusão que influenciou outras ações públicas voltadas para as transformações sociais necessárias, após décadas de ditadura. Ainda hoje é importantíssima ao reafirmar a necessidade de um Estado que cuida e inclui e que não submete a população à violação de direitos humanos. Entretanto, o que ocorre atualmente é o processo contrário ao descrito no começo dos anos 2000, quando novas demandas eram incorporadas à política nacional, sempre em coerência aos princípios da reforma psiquiátrica. Hoje, ao contrário, o campo da saúde mental se mostra apático na formulação de políticas referentes a eventos contemporâneos.

É urgente uma análise da política de saúde mental como um todo, preservando os referenciais de desinstitucionalização; o cuidado em liberdade; a promoção de autonomia e protagonismo de usuários da rede; o cuidado em território e a defesa irrestrita dos direitos humanos. Além disso, garantindo acesso pleno, cuidado integral, prevenção a iatrogenias e promoção de equidade. A luta antimanicomial e a reforma psiquiátrica são fundamentais na sociedade brasileira. Entretanto, em 2025, são insuficientes para as necessidades de atenção à saúde. É necessária uma política afirmativa, pautada nas demandas epidemiológicas da população, de forma coerente ao que foi produzido desde a lei da reforma, e que consiga enfrentar o retrocesso silencioso que vivemos nesse campo.
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Por Conselho Nacional de Secretários de Saúde