Covid-19: a pandemia que humanizou ainda mais a relação dos profissionais de saúde com pacientes e suas famílias

A pandemia arrefeceu e começa a dá sinais de controle. As intervenções governamentais, a adesão de muitos às medidas restritivas e sanitárias e o advento da vacina vem subjugando o novo coronavírus que matou milhões em todo mundo. Mas a crise que pôs o planeta em suspenso deixou marcas profundas na humanidade, trouxe ensinamentos e mudou comportamentos dentro e fora do ambiente hospitalar. Essa é a avaliação do médico Ivan Mendes Ribeiro Neto, pneumologista do Hospital da Polícia Militar, unidade gerida pela Secretaria de Estado da Saúde (SES).

Médico há seis anos e pneumologista há dois, conta que jamais imaginou que terminaria sua residência lidando com uma pandemia que colocaria em xeque quase tudo o que a comunidade científica sabia sobre as doenças respiratórias causadas por coronavírus. Porque elas já existiam, segundo ele, embora apresentassem quase sempre um quadro leve, como resfriados comuns. “A forma como se apresentou, trazendo uma síndrome respiratória aguda grave, com um quadro de inflamação no pulmão, a princípio, para depois afetar outros sistemas do organismo, surpreendeu cientistas e profissionais de saúde”, disse.

A surpresa diante do cenário de pandemia aliou-se ao receio do desconhecido. Não saber muito sobre a doença angustiava os profissionais de saúde que estavam na linha de frente da assistência ao paciente Covid-19. O temor maior, segundo Ivan Mendes, era levar o vírus para casa, onde mulher e filho pequeno o aguardavam no fim de cada dia. “O primeiro sentimento de todo mundo foi de precaução, porque todos nós estávamos ali no atendimento, no cuidar, e o estranho era que o mesmo receio que o paciente tinha quando chegava a minha frente eu tinha dele, o de ser contaminado”, revelou.

Ivan Mendes, como os demais profissionais de saúde que estavam no cuidado do paciente, precisaram superar o medo diariamente para continuar com a profissão. O passar dos dias e meses, os novos conhecimentos sobre o vírus e a doença, os testes bem sucedidos das vacinas traziam sopros de esperança, que se fortalecia toda vez que pacientes graves venciam a Covid-19 e deixavam o hospital. Mas, apesar dos alentos, o ano pandêmico foi muito difícil, segundo relata. A maior dificuldade para ele, e entende que também para as equipes, foi o alto volume de pacientes graves.

“Antes do novo coronavírus, em um plantão de 12 horas, entubávamos um, dois pacientes. Já no plantão Covid eram inúmeras as intervenções que precisavam ser feitas nos doentes. Então a questão não era o nível de complexidade, mas a quantidade dele, porque um paciente grave precisa de um médico, de um enfermeiro e de um técnico de enfermagem ao lado dele. Você imagine ter 15, 20, 30 pacientes com esse nível de complexidade”, ressaltou.

Em um momento específico da pandemia, durante o pico da segunda onda, a angústia reverberou entre as equipes de saúde em duas situações particulares, mas interligadas ao mesmo tempo: a exaustão mental dos profissionais da linha de frente e a impotência frente à fila que se formava e crescia por um leito de UTI. Segundo Ivan Mendes, saber que alguém estava precisando de cuidados intensivos e não se podia dar, era devastador.

“Este foi um momento muito difícil mesmo, muito angustiante. Recebíamos pedidos de UPAs  do interior, unidades que não tinham tanto arsenal terapêutico quanto nós do HPM, mas estávamos cheios. Pensávamos, poxa se esse paciente viesse pra gente poderíamos transformar esse momento da doença.  Eu queria atender a todos, como se eu quisesse ser um polvo e abraçar a todos os pacientes. Isso porque eu tinha a percepção de que o atendimento no HPM era muito bom, eu queria, como toda equipe e gestão, trazer todo mundo pra cá”, contou.

Maior emoção

Viver a pandemia do novo coronavírus, que apresentou uma síndrome respiratória aguda grave mexeu com as emoções dos profissionais de saúde de muitas formas. As altas dos pacientes traziam alegrias e eram festivas. As perdas causavam frustração e dor. Mas, para o pneumologista Ivan Mendes, o que mais o emocionava era falar com as famílias dos pacientes, um hábito que alimenta mesmo quem não está no plantão, ainda que apenas passe para ver um doente pela pneumologia.

“Eu olho, avalio e ligo para a família. E esse momento era o que gerava mais angústia, mas também era o que mais me emocionava porque eu iria conversar com a pessoa que estava sem ver o pai, a mãe, o ente querido, e ainda lidava com a incerteza de que viria  acontecer. No caso do doente grave com a Covid-19 infelizmente poderia vir a falecer a qualquer momento. Então, você conversar isso da forma mais humana possível com uma pessoa que não é médico, enfermeiro, que não tem informação nenhuma na área da saúde, para que ele entenda todo o quadro e que o desfecho pode ser aquele que a gente não quer, que é a morte. Passar por tudo isso sem ver o pai, a mãe, o filho, era angustiante. Então as vezes a gente fazia a ligação para consolar”, declarou.

Humanização

A pandemia trouxe a humanização, segundo conclui o pneumologista. “Este foi um ganho e ensinamento muito grande sobre a necessidade de a gente ter um contato íntimo com as famílias. A crise ensinou que a gente pode manejar pacientes muito graves e deixar a família ciente do que está acontecendo, mesmo de longe”, considerou o médico, acrescentando que os boletins médicos precisam ser muito bem feitos para melhor compreensão do quadro clínico do paciente pelas famílias.

E o falar sobre humanização, Ivan Mendes destaca o empenho e o comprometimento das equipes médicas e assistenciais do Hospital da Polícia Militar, que na pandemia serviu de retaguarda ao Hospital de Urgência de Sergipe (Huse), unidade que trabalha a alta complexidade. Segundo ele, a equipe multidisciplinar do HPM deu exemplo de solidariedade e humanidade na pandemia. Os psicólogos e assistentes sociais trabalharam exaustivamente no empoderamento do doente e da família, inclusive no pós- alta.

 “Falo bem da turma do HPM porque nós temos uma equipe multidisciplinar bem estabelecida, os médicos especialistas, clínicos, intensivistas, e costumo dizer que sozinhos não iríamos manejar absolutamente nada nessa pandemia. O mundo precisava da equipe multidisciplinar para colocar em prática aquilo que a gente estava aprendendo. E se não fossem os fisioterapeutas, enfermeiros, técnicos e, especificamente no HPM, o serviço social e a psicologia, atravessar a Covid-19 teria sido muito mais difícil e quem sabe impossível”, opinou.

SUS

O Sistema Único de Saúde (SUS) foi vital no enfrentamento do novo coronavírus, como avalia Ivan Mendes. Na verdade, segundo suas próprias palavras, foi surpreendente como o SUS poderia ser tão efetivo no manejo da pandemia, que, para ele, se deu de forma excelente. “Eu vi um SUS que eu não conhecia. Já trabalhava no sistema, mas não tinha visto uma atuação tão plena. Pude ver na prática um sistema atuante e funcional. No local que atuei foi muito efetivo, com as equipes integradas, bem remuneradas e muito bem coordenadas”, declarou.

Acentua a eficácia e a importância do SUS pela presença dos insumos, da ventilação mecânica, medicamentos, exames e, principalmente, da assistência das equipes de saúde. “Isso é o SUS”, atestou, lembrando a eficiência do Sistema Único de Saúde e dos seus gestores locais na montagem de novas UTIs e leitos clínicos Covid, bem como a sua expansão imediata à medida que a crise avançava e as necessidades dos pacientes se multiplicavam.

Foi o SUS também que trouxe ao Brasil e aos brasileiros a ação mais eficaz de controle da pandemia: a vacina. “Sem o SUS não teríamos a vacina e ela não seria igualitária, para todos, claro que respeitando os grupos prioritários, o que é natural em políticas de saúde pública”, defendeu.

Lição

A pandemia deixou lições. A aprendida por Ivan Mendes foi a de que sozinhos ninguém consegue nada. “Acho que esta foi a maior lição pra mim. Na formação médica, o foco é no profissional médico, na sua atuação, mas quando a gente vai para a prática vê que sozinho não se faz muita coisa. O pneumologista, por exemplo, precisa do enfermeiro bom e qualificado que mereça a sua confiança, do profissional de fisioterapia bom e qualificado que vai atuar com a reabilitação e o manejo da ventilação mecânica do paciente, do técnico de enfermagem qualificado para fazer o remédio, do profissional de limpeza para manter o hospital limpo. Então, sozinho não se consegue absolutamente nada”, finalizou.

Por: Conceição Soares

Foto: Valter Sobrinho